Topo

Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Documentário desmascara Neymar

Neymar e o filho Davi Lucca na série "Neymar: O Caos Perfeito" - Divulgação/Netflix
Neymar e o filho Davi Lucca na série "Neymar: O Caos Perfeito" Imagem: Divulgação/Netflix

Colunista do UOL

29/01/2022 22h22

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Os três episódios do documentário "O Caos Perfeito" (Netflix) sobre a carreira de Neymar devem ser assistidos por quem gosta de futebol. Mas, mais do que isso, também por todos os que se interessam pelas complexidades das relações humanas. Por quem quer saber mais sobre nossos desejos, sonhos e conflitos. E também por quem quer compreender em que tipo de sociedade vivemos.

Como muitos de nós, como milhões de nós, Neymar cresceu querendo jogar bola. Como nem todos nós, teve um pai que compartilhava desse sonho.

O senhor Neymar foi jogador de carreira curta: sofreu uma grave lesão, teve que parar de jogar e ir trabalhar como pedreiro. Mas eis que o filho parecia ter uma habilidade rara, o que deu a ele a sensação de que Juninho poderia dar continuidade a uma história precocemente interrompida. Nesse ponto, pai e filho se misturam de forma perturbadora.

Juninho mostrou talento precoce e, aos 14 anos, já era desejado por times europeus. Neymar pai passou a ser o orientador, gestor e mentor de tudo o que envolvesse a vida do garoto.

A relação de pai e filho conforme mostrada no documentário foi muito bem descrita e interpretada na coluna de Diego Garcia. É impossível deixar de perceber o tipo de projeção que até hoje articula a vida de ambos; uma projeção que faz Neymar até hoje meter um "Jr" nas costas das camisas com as quais joga.

Neymar pai se refere ao filho quase sempre como uma corporação. Em uma das cenas, Neymar está deitado no sofá da sala, com atitude desinteressada, vendo o pai mostrar a ele gráficos de uma empresa que, segundo o pai, é dele (cerca de 200 funcionários fazem parte do time, informação dada por Neymar pai no primeiro episódio). Neymar parece não gostar do que vê. O pai diz que quando a carreira do filho acabar a empresa vai ser comandada por ele. Neymar consegue murmurar, em um tom mais baixo, que não quer comandar uma empresa.

Numa outra cena, o pai diz que não gostaria de ver Neymar ser comentarista de TV quando a carreira dele acabasse, sugerindo que faz o que faz para garantir o futuro do filho. Um futuro conforme ele assim o vislumbra. O desejo de Neymar entra em jogo apenas quando ele manifesta interesse em mudar de time.

No documentário, a voz de Neymar é sempre baixa, sempre tímida. As cenas entre Neymar Jr e o filho Davi envolvem a palavra "amor" fartamente trocada entre eles. Entre Neymar Jr e o pai a palavra não vêm à tona nem uma única vez. Planilhas, rendimentos, negócios: o que articula a relação de ambos é essa trinca.

O documentário escancara a relação de Neymar pai e Neymar filho; e escancara também a trajetória do garoto que virou ídolo antes dos 18 anos e nunca mais deixou de ser o centro das atenções.

Alvo de uma infinidade de manifestações de ódio, xingado de filha da puta por um estádio inteiro durante minutos sem fim, vaiado fartamente por sua própria torcida, acusado de violência sexual (o caso foi arquivado), paralisado por uma contusão que por pouco não o deixou sem o movimento das pernas. Tudo acontece enquanto o adolescente está virando homem.

Com delicadeza, percebemos a relação entre Neymar Jr, seu filho, a mãe de seu filho e o padrasto. Uma relação cheia de afeto, de respeito e de ternura. Neymar foi pai aos 19 anos e, de acordo com o que vemos no documentário, nunca chegou a titubear sobre assumir a paternidade fruto de uma relação rápida quando era adolescente. Diz muito sobre quem Neymar pode de fato ser quando as câmeras estão desligadas, quando ele está sozinho. Mas será que ele fica sozinho?

Em "O Caos perfeito" ele está sempre cercado de amigos que não sabemos quem são. Sempre em turma. Sempre performando sua figura pública. É bastante difícil acessar nossos reais desejos, dúvidas, sonhos, medos e conflitos quando não conseguimos ficar sozinhos, em silêncio, em reclusão. Neymar vive cercado por muitas pessoas em muitas casas diferentes. Quem é Neymar quando as luzes se apagam, todos saem e ele coloca a cabeça no travesseiro?

Quantos de nós, se lançados à fama e à riqueza antes dos 16 anos, seríamos capazes de vingar? Quantos de nós não teríamos nos tornado apenas uns babacas? Quantos de nós teríamos conseguido refazer pactos com o homem que, desde que nos entendemos por gente, cuida da nossa vida?

Neymar nunca teve seu talento questionado; nasceu para ser gigantesco. Mas entre ele e o destino havia toda a complexidade das relações humanas.

É possível tirar o racismo de todo o movimento de ódio jogado em sua direção? Não, não é. Assim como não é possível tirar o machismo da formação de qualquer um de nós.

No documentário, mulheres aparecem quase sempre na condição de mães ou opinando no caso da acusação de violência sexual. No mais, são homens e seus pensamentos. Homens e suas visões de vida. Homens e seus pactos. Homens e suas visões de jogo e de mundo.

Assim como muitos de nós, Neymar só queria jogar bola. Ao contrário de muitos de nós, ele tinha o talento necessário para chegar ao topo do mundo. Mas o preço que se paga, quase sempre, é alto demais.

Na última cena (se não quiser o spoiler melhor parar de ler aqui) Davi pede para Neymar ir bater uma bola com ele e uns amigos na quadra do condomínio em que estão. Neymar coloca a chuteira nos pés do filho e eles caminham juntos. A gente então vê crianças jogando, Neymar, descalço, no gol. Na hora, bate a sensação de que é disso que se trata, e que não deveria ser mais do que isso.

Enquanto os créditos subiam eu pensava que talvez Neymar não tenha conseguido aceitar a realidade de que, para o bem e para o mal, essa inocência ficou pelo caminho. Para entender a vida como ela é, para colocar os dois pés nesse mundo de responsabilidades e maturidades, ele vai precisar se assumir como homem, cidadão, profissional de um esporte que o trata como uma mercadoria. Essas são as regras do jogo que ele ama, essa é a verdade escancarada.

Uma pena, claro. Mas atores como ele são os que podem nos ajudar a virar esse jogo. Só que para isso Neymar vai ter que, enfim, deixar de ser objeto e se transformar em sujeito. A travessia é longa, não acontece da noite para o dia, mas é uma que separa a celebridade do heroi: a celebridade age por ela mesma, o heroi nos resgata a todos.

A boa notícia é que esse filme ainda não acabou. Vai, Neymar. Vai ser ainda mais gigantesco na vida.