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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Corpos negros e femininos seguem incomodando à frente das câmeras

Gabigol, atacante do Flamengo, aponta ter sido chamado de "macaco" por torcedores do Fluminense - Reprodução Twitter
Gabigol, atacante do Flamengo, aponta ter sido chamado de "macaco" por torcedores do Fluminense Imagem: Reprodução Twitter

Colunista do UOL

07/02/2022 15h57

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Durante o Redação Sportv desse dia 7 de fevereiro, o repórter Luiz Teixeira deixou o presidente do Fluminense indignado quando disse que "se o presidente do Fluminense fosse negro dificilmente uma nota como essa teria sido publicada". A nota a que Teixeira se refere é uma nota de repúdio emitida pelo Fluminense em referência aos gritos de macaco jogados na direção de Gabigol durante o Fla-Flu do dia 6 de fevereiro. Para Teixeira, a nota não foi tão contundente quanto deveria ser.

Como argumentar contra o que disse Teixeira, que aliás é um excelente repórter? É impossível.

Como também deveria ser impossível que, sabendo o que se sabe sobre a história dos racismos que fazem parte da fundação dessa nação, ainda haja quem se sinta confortável para jogar a carta simbólica do "nem todo branco".

Mas deixa eu voltar esse filme.

Estamos diante da seguinte situação: gritos de "macaco" foram ouvidos por muitos dos que estavam presentes ao estádio durante a saída de Gabigol para o intervalo. Houve quem, escutando as ofensas, tivesse ligado a câmera para registrar. Nas imagens, escuta-se, entre muitos ruídos, a palavra macaco. O presidente do Fluminense, tomando ciência do ocorrido, e usando com cuidado a palavra "suposto" aqui e ali, emitiu nota dizendo que o clube iria investigar e tomar as medidas cabíveis.

Teixeira, que é negro, ponderou em seu argumento durante o Redação que está na hora enfrentarmos a questão para além de soltar notas de repúdio. Outra vez, como discordar do que ele diz?

Mas Mário Bittencourt, presidente do Fluminense, não gostou da intervenção de Teixeira e pediu para participar, por link, do programa que debatia o assunto. Palavras do presidente:

"Queria abrir a minha fala mostrando a minha indignação com uma frase que foi dita no programa de que a nota do Fluminense teria o teor que teve porque o presidente do Fluminense não é negro. Essa frase de um dos colegas de vocês é tão ou mais discriminatória do que o que supostamente possa ter ocorrido ontem. Digo isso porque está fazendo juízo de valor de mim, da minha família, eu sou um homem que tem uma relação familiar muito profunda com essa causa do racismo. Porque minha esposa e a família da minha esposa são de origem negra e indígena. Então minha própria esposa já foi vítima de situações muito duras na rua com uma das nossas filhas."

Vamos parar no trecho em que ele diz: "Essa frase de um dos colegas de vocês é tão ou mais discriminatória do que o que supostamente possa ter ocorrido ontem".

Não, mil vezes não.

Está na hora de brancos pararem de querer se vitimizar em situações de racismo (e de homens quererem se vitimizar em situações de machismo). O que o presidente do Fluminense tenta fazer com esse tipo de argumentação é se colocar como vítima no centro de um episódio que não o envolve.

O episódio envolve uma situação de injúria racial e a vítima é o jogador que usa a camisa do time rival. Eis aí uma enorme oportunidade que o presidente tricolor tinha para colocar o Fluminense em seu real tamanho, que é o de um time gigante.

Luiz Teixeira, o repórter, tampouco pode ser conduzido ao centro desse teatro macabro, como fez Bittencourt. Teixeira está fazendo o seu trabalho e narrando a vida como ela é. Puxá-lo para o centro do tablado não é justo nem digno.

Mas o que o Fluminense, via seu presidente, poderia ter feito diante da situação?

Bittencourt poderia ter emitido, de cara, uma nota de repúdio firme e contundente, e, se ainda assim houvesse a ponderação de um repórter altamente gabaritado na profissão e que pode falar sobre o racismo a partir de um ponto de vista que nenhum outro ali no programa possuía, Bittencourt poderia ter apenas silenciado e tentado aprender com a situação.

Talvez, quem sabe, mandado uma mensagem para Teixeira ao final do programa pedindo que ele falasse mais sobre o que sentiu diante do ocorrido, e sobre como achava que o Fluminense poderia e deveria agir. Escutar. Refletir. E só então agir. O ímpeto de reagir imediatamente a tudo, e se colocando numa posição defensiva, joga o debate para outro lugar — um lugar, muitas vezes, conveniente ao opressor.

É absolutamente óbvio que se o presidente do Fluminense fosse negro a nota seria outra porque seria escrita a partir de uma outra experiência de vida. Assim como se ele fosse mulher.

Mas isso não significa, claro, que seria uma nota mais contundente. Talvez não fosse porque estamos falando de preconceitos que fazem parte da base da nossa sociedade e nos infectam a todos, a despeito de sexo, raça, classe ou sexualidade. O que podemos afirmar é que a nota teria sim sido uma outra nota. Por que a óbvia constatação soa ofensiva?

O que incomoda é justamente o que não foi dito e que não está na nota, no campo ou no ocorrido; o que incomoda é a presença de Teixeira em um local de igualdade intelectual e de forças.

O que incomoda é que pensamentos como os de Teixeira sejam colocados à mesa de forma tão direta. "Como ousa?", berrarão os que esperam de minorias políticas apenas os usuais "sim senhor" e "sim senhora".

O que podemos dizer com segurança é que se Teixeira fosse branco o debate não teria alcançado o nível de verdade que foi capaz de alcançar. Até muito pouco tempo, víamos pela TV apenas pessoas brancas falando sobre atos racistas nos campos de futebol.

Mas a cara do jogo mudou e, quando corpos diferentes entram no palco, os afetos passam a circular de formas diferentes também.

É de fato incômodo ser branco hoje. A gente não sabe o que dizer, como dizer, quando dizer. Vivemos pisando em ovos. Que situação mais incômoda, não é mesmo? É uma reviravolta na vida de tantos de nós que há 500 anos apenas gozamos dos privilégios de nossas branquitudes.

Mas, vejam, é incômodo ser negro nesse país há 500 anos.

É incômodo ser mulher nesse mundo há cinco mil anos.

Bem-vindos, meus caros.

O lugar do incômodo é uma passagem para que nos tornemos melhores. É preciso habitá-lo com humildade e curiosidade. Não é esperneando ou tentando protagonizar episódios que não nos envolvem que sairemos disso. Não é reagindo defensivamente a todo instante.

É também preciso entender que o corpo branco é um corpo que oprime de cara. Podemos ser brancos conscientes, sensíveis, simpáticos à luta. Mas, ainda assim, nossos corpos carregam na pele a história dos opressores. Assim como o corpo de um homem também o faz. São corpos violentos mesmo que eles nada façam. Lidemos com esse fato.

É preciso coragem para existir e resistir num mundo que todos os dias nos diz que temos a pele errada, o sexo errado, a sexualidade errada. Luiz Teixeira é um repórter excepcional e corajoso.