Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Milly: A mulher e o futebol
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Toda vez que vejo uma foto de Leila Pereira, eu sinto uma mistura de sensações contraditórias. O primeiro impacto é o da camisa que ela veste. Leila usa as cores do rival e isso, na minha alma, nunca pega bem de imediato. Mas esse impacto dura uma micro-fração de segundo porque, na sequência, o sentimento de orgulho me invade: Leila é uma mulher e ela comanda um dos maiores times do planeta (que não tem Mundial, tudo bem, mas que, ainda assim, é gigante). A imagem me emociona e me bate num lugar de orgulho. Eu nunca imaginei que veria uma mulher nesse posto. A sociedade que me forjou não foi uma na qual havia esse espaço. Mas o mundo muda, ainda que a gente goste de dizer que não. Muda, muitas vezes, sem que a gente perceba que ele está mudando —e Leila Pereira me lembra disso.
A transformação tem que ser estética também. Uma imagem movimenta muitos afetos e ter uma mulher na liderança de uma instituição como o Palmeiras é importante demais na luta por justiça e liberdade.
Leila é uma mulher à frente de um clube, mas também à frente de outras duas grandes empresas —uma delas, patrocinadora do time que ela agora preside. É, portanto, uma mulher que ocupa cargos de poder nesse mundo dos homens. É uma infiltrada. Alguém que pode, mais rapidamente do que milhões de outras pessoas, mudar o rumo das coisas.
E é aí que o que sinto por ela se complexifica.
Eu não acredito que colocar mulheres em situações de poder seja solução para grandes transformações. Claro que é importante que tenhamos representatividade nas escalas do poder, mas, se a representatividade estiver conformada à ordem, não mudaremos nada. Seria preciso que mulheres como Leila não estivessem ali apenas para manter a roda girando como sempre girou. Uma mulher que lidere milhares de funcionários e continue alheia às necessidades da classe trabalhadora vai ser apenas uma mulher em situação de poder e nada além disso.
Estar confortavelmente inserido nesse sistema é se acomodar aos seus horrores, e a violência contra a mulher é um dos maiores.
Nesse sistema, o corpo masculino é usado para o trabalho e para a Guerra; e o feminino para o sexo. Nesse sistema, o homem é abusado no trabalho; a mulher na cama. Nesse sistema, a mulher é tratada como objeto a ser consumido e destruído. Nesse sistema, uma mulher é estuprada a cada dez minutos. Nesse sistema, três mulheres são assassinadas a cada dia. Nesse sistema, a chance de sua filha chegar à adolescência sem ter sido abusada é muito baixa. A chance de sua mãe nunca ter sido assediada beira o zero. A chance de sua namorada jamais ter sido sexualmente constrangida no ambiente de trabalho é nula.
Mas eu não precisaria conferir às mulheres o parentesco com um homem para que ela tivesse sua integridade física e moral respeitadas. Uma mulher se basta nela mesma, é sujeito em si. Uma mulher não precisa ser mãe, namorada, noiva, filha, sobrinha para que você se revolte com o que passamos nesse mundo.
Ser mulher e gostar de futebol é praticamente viver uma relação abusiva: a gente ama um esporte que nos maltrata, que nos ofende, que nos diminui e nos exclui. E ainda assim, todos os dias, a gente se pega checando as notícias sobre nossos times, comprando camisas, ligando a TV para torcer, ou indo ao estádio mesmo sabendo que é bastante provável que sejamos vítimas de algum tipo de assédio.
Então, se por um lado, eu me orgulho ao ver Leila Pereira comandar o Palmeiras, a Crefisa, o Centro Universitário das Américas ou qualquer outro conglomerado que eventualmente ela possa chefiar, por outro, a menos que ela atue para transformar o sistema e não para reproduzi-lo, seguiremos sendo abusadas aqui no chão dessa fábrica chamada Brasil.
O dia 8 de março é sobre entender que igualdade de gênero não é pedir igualdade pelo direito de oprimir. Igualdade de gênero é uma luta que, quando o juiz apitar o fim desse jogo, terá nos libertado a todas, todos e todes.
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