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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Futebol e racismo: tudo a ver

Leonardo Ponzo, argentino preso por racismo em Corinthians x Boca, em foto ao lado a Rafael Di Zeo - Reprodução/Facebook
Leonardo Ponzo, argentino preso por racismo em Corinthians x Boca, em foto ao lado a Rafael Di Zeo Imagem: Reprodução/Facebook

Colunista do UOL

27/04/2022 15h20

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Poucos debaterão a ideia de que a luta travada contra o racismo no futebol não está funcionando. Notas de repúdio, manifestos indignados, "vamos estudar punição", "pedimos desculpas se ofendemos alguém", "não era minha intenção", "Racismo aqui não", faixas, cartazes etc etc etc já não enganam mais muita gente. Não enganam nem mesmo os que ainda fingem acreditar que esse ramirrâmi está funcionando.

O torcedor do Boca detido ontem em Itaquera, por exemplo, já está nas redes sociais tirando onda. Pagou uma fiança de três mil reais e se mandou.

E muitos de nós, a fim de criticar o racismo do gringo, estamos usando a xenofobia como arma. Onde isso vai nos levar? Posso adiantar a resposta e quem quiser parar de ler aqui fique à vontade porque não há muito mais a dizer, ainda que eu vá dizer. Vai nos levar a lugar nenhum.

É tudo parte de um teatro macabro que, enquanto finge lutar contra o racismo, aceita de bom grado que as estruturas se mantenham exatamente como são. Racismo não é apenas um desvio de caráter. Ele é, também, um desvio de caráter. Mas é muito mais do que isso.

Os racistas não moram exclusivamente na Argentina. Ontem mesmo Gabi Gol estava sendo alvo de injúrias raciais em jogo contra o Fluminense. Ontem mesmo alguns membros da torcida do Atlhetico paranaense estavam cometendo crimes raciais em sua moderna arena. O racismo está em todos e em todas nós porque fomos criados para ser racistas. Assim como machistas, misóginos e LGBTfóbicos. Disso já sabemos.

Cabe agora a cada um de nós nos deseducar. Como? Escutando aqueles que há séculos são marginalizados, silenciados, invisibilizados, oprimidos. Lendo o que eles estão escrevendo. Abaixando a cabeça para compreender tudo o que fizemos de errado até aqui. Entendendo que corpos brancos carregam em si violências mesmo que não concordemos com elas, mesmo que as rejeitemos, mesmo que nos enojemos. A desconstrução começa em cada um de nós.

Leonardo Ponzo, o argentino detido ontem por imitar um macaco na tentativa de ofender corintianos, é apenas mais um entre milhões. O presidente da República, que quando era candidato comparou negro a gado em palestra na Hebraica do Rio (of all places, como diria meu amigo Jay), é apenas um outro qualquer.

As constrangedoras campanhas da FIFA, da Conmebol e da CBF que se limitam a confeccionar faixas e camisas para cumprir tabela nessa luta não vão mudar absolutamente nada de estrutural. Pois se a maior parte dos jogadores e das jogadoras de futebol são negros e negras e a gente pode contar nos dedos quantos deles e delas viram treinadores, narradores, comentaristas, dirigentes e diretores da CBF a estrutura racista está sendo esfregada bem nas nossas fuças.

Ponzo é apenas mais um ser humano desprezível movido à ignorância. Uma rápida investigação no espelho revelaria a ele mesmo que é provável que ele não seja descendente do príncipe da Dinamarca. Nós somos as veias abertas da América Latina (Salve Galeano). Mesmo os mais pálidos e de olhos azuis entre nós são chamados de chicanos pela a turma do norte global (salve Bacurau).

Seria importante que nos enxergássemos pelo que somos: nações erguidas através de um longo processo de colonização, extermínio, exploração, genocídio. Nós, brasileiros, temos nas nossas costas quase 400 anos de escravidão. Se existimos há pouco mais de 500 anos assim com esse nome de Brasil então passamos muito mais tempo escravizando pessoas negras do que não escravizando. Essa estrutura racista faz parte das nas nossas vísceras e das nossas instituições.

O racismo funciona perfeitamente aos que estão no poder. Enquanto a gente se mata no chão de fábrica eles reinam nos andares de cima. Ponzo é apenas mais um ser humano desprezível, ignorante, medíocre. E é a ponta do iceberg.

O Boca se manifestou. Uma nota curta disponibilizada nas redes sociais e cheia de indignação. Do que vale? De nada. De absolutamente nada.

Seria essencial que o futebol de fato se metesse nesse pântano. Políticas de reparação, de reestruturação, de retomada. Conscientização. Educação. Restauração.

É preciso apenas uma coisa para isso: vontade política. Dinheiro nesse ambiente não falta. Aliás, sobra. Mas não há vontade política. Porque os que estão no poder não querem correr o risco de perder o poder. Então eles fingem lutar. Mais uma faixa. Mais bottons. Mais camisetas. Mais uma campanha. Chama alguém do marketing.

De imediato, clubes cujos torcedores fossem flagrados em atos racistas deveriam ser eliminados da competição em questão. Novas soluções para velhos problemas. Radical, alguns diriam. Radical, eu argumentaria, é o racismo.