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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

FIFA, Brasil, Argentina e as manchas na reputação do futebol mundial

Bola da Copa do Mundo Fifa em primeiro plano, à frente da cidade de Doha, no Qatar - David Ramos/Getty Images
Bola da Copa do Mundo Fifa em primeiro plano, à frente da cidade de Doha, no Qatar Imagem: David Ramos/Getty Images

Colunista do UOL

10/06/2022 13h23

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O comitê da FIFA que atuou sobre o caso da partida que não aconteceu entre Brasil e Argentina durante as eliminatórias deu seu parecer sobre a questão e foi duro ao se manifestar. Li sobre o episódio no texto de apuração de Marcelo Rizzo, colunista do UOL. Diz o texto:

"O incidente foi transmitido para milhões de telespectadores via televisão e, assim, mancharam as competições [da Fifa] e o futebol. Tais incidentes são totalmente intoleráveis e deploráveis e merecem uma sanção severa para evitar que tais eventos se repitam".

Foi isso o que escreveram os os três membros do Comitê que tomaram a decisão.

Acho curioso o tom de indignação.

De fato, o incidente, que envolve participação destrambelhada da Anvisa e, portanto, do governo brasileiro, foi, para ficar em uma palavra, constrangedor. Mas o que me chama a atenção é o tom de fúria da nota, um tom que eu nunca vi quando estamos lidando com casos de racismo e homofobia no futebol, por exemplo.

Nessas situações as notas, e as decisões, são recheadas de "vejam bem", de ponderações e, claro, de "não vamos mais tolerar". Tudo isso, depois, embalado em campanhas de marketing e ações envolvendo a entrada em campo dos times.

Contra o racismo, a recomendação atual é a de deixar mais nas mãos do juiz o que fazer.

A FIFA indica que, diante de flagras racistas nos estádios, o jogo deva ser imediatamente parado, mas que pode recomeçar depois que o juiz der um pito em quem quer que seja (torcida, comissão técnica, jogadores) através do sistema de som do local.

Ou seja: "gente, por favor, não façam isso de racismo. Parem para que o jogo possa continuar. Racistas aqui presentes, acomodem-se, comprem um refrigerante, um cachorro quente e não estraguem o espetáculo".

Se os atos seguirem acontecendo, os times devem descer para o vestiário e o juiz deixa todo mundo de castigo até optar pelo recomeço do jogo.

Se, ainda assim, houver racismo, aí chega, basta, todo mundo pra casa pensar na malcriação. Jogo suspenso.

Três chances.

E nenhuma solução envolve a eliminação do time cujo jogador, dirigente ou torcedores cometeu racismo - que seria a única aceitável.

"Ah, que radical", dirão. Ao que responderei que radical é o racismo.

O que dizer da homofobia se a FIFA está realizando a Copa em um país que considera o amor entre pessoas do mesmo sexo um crime capital punível com pena de morte?

Alguns hoteis no Qatar já disseram que não aceitarão gays na Copa. Outros, dizem que aceitam desde que não haja troca de carinho. "Podem vir, mas escondam-se".

Se a luta é toda por visibilidade, se a gente entende que ser visto é o que faz você existir, a colocação "venham, mas não se revelem" é um crime. E a FIFA? Segue o jogo. Bora valorizar esse destino maravilhoso que é o Qatar.

Direitos trabalhistas? Ah, deixa isso pra lá, sugere a FIFA.

A Anistia Internacional recentemente se pronunciou sobre as milhares de acusações que apontam morte de trabalhadores durante a preparação do país para a Copa. Mortes, falta de direitos trabalhistas, falta de dignidade, falta de decência - todo tipo de abuso. A AI pede 440 milhões de dólares em indenizações.

Questionada sobre o assunto, a Fifa disse que está "avaliando o programa proposto pela Anistia", observando que "envolve uma ampla gama de infraestrutura pública que não é da Fifa ou específica da Copa do Mundo".

Um tom bastante neutro diante de denúncias de morte e abuso.

A Anistia destacou que os 440 milhões representam uma pequena fração dos 6 bilhões de dólares que a Fifa deverá receber nos próximos quatro anos - um ciclo "normal" de Copa do Mundo para a FIFA.

Fica a impressão de que, para a FIFA, futebol é jogo pra torcedores homens, héteros e brancos. De preferência, não pobres porque quem não pode pagar (por produtos, viagens, hoteis, ingressos, parafernálias, assinatura de TV etc) não tem muito a nos oferecer.

Eu diria que se tirar as mulheres, os negros, os LGBTQs dessa conta do que compõem a torcida hoje, o futebol morre amanhã.

Fora isso, a FIFA atua na protocolização do jogo, tirando dele qualquer aspecto original e espontâneo. Manifestações políticas são proibidas, mesmo que elas sejam para alertar sobre massacres, genocídios, golpes e desastres naturais.

Lentamente, a FIFA vai deixando o jogo mais chato, mais protocolar, menos autêntico e menos contagiante. Todas as fichas são jogadas na Copa do Mundo, ocasião em que, a despeito de todos esses erros, o futebol mostra seu tamanho, sua capacidade, sua potência mobilizadora de afetos.

O tom indignado da nota diante do cancelamento do jogo entre Brasil e Argentina talvez se explique pelo dinheiro que foi perdido com contratos não honrados? Fica o questionamento. A luta contra o racismo não gera dinheiro, a luta contra a homofobia, o machismo e a misoginia ainda menos e a luta por direitos trabalhistas, claro, acaba por acarretar a perda de dinheiro.

É essa mesma entidade que trabalha arduamente para destruir a glória do esporte que ela deveria proteger que diz que um jogo adiado mancha a reputação do futebol.