Topo

Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que o encarecimento do preço dos ingressos é uma política racista

Mosaico da Gaviões para o clássico Corinthians x São Paulo - Marcello Zambrana/AGIF
Mosaico da Gaviões para o clássico Corinthians x São Paulo Imagem: Marcello Zambrana/AGIF

Colunista do UOL

17/06/2022 12h39

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A Gaviões da Fiel, maior organizada do Corinthians e, portanto, uma das maiores organizadas do mundo, soltou nota contundente a respeito da prática de encarecimento do preço dos ingressos. A nota é forte e precisa ser reconhecida como importante. Diz um trecho do texto cuja íntegra está logo abaixo na imagem da postagem:

"Mais uma vez o elitismo e o autoritarismo são os destaques em uma partida de futebol, conforme expressa a cartilha do futebol moderno.

Dirigentes e cartolas remodelam as políticas esportivas, fazendo com que o nosso querido futebol, outrora pertencente ao povo, venha a passos largos retornando a sua origem: a elite, o berço de ouro.

Em partida válida pela 12ª rodada do Brasileirão 2022, mais uma vez as torcidas organizadas do Corinthians ficaram de fora da arena. E quem entrou, pagou cerca de R$ 200,00 no ingresso.

Nos empurrando pra clandestinidade, sem qualquer aval da Justiça, Mario Celso Petraglia, presidente do Athletico-PR, faz renascer em si os poderes imperiais, da censura: o Estado é ele. E só ele pode definir quais organizações podem entrar no estádio. Por exemplo, seu grupo político, que tem nojo do povo, organizado ou não, pode assistir ao empate entre Corinthians e Athletico. Nós, não"

Há algum tempo, a Gaviões protesta contra o aumento do preço dos ingressos, denunciando textualmente a elitização pela qual passa nosso futebol.

Essa elitização é real, é projeto, é método. Quando se acabou com a geral, no Maracanã, a ideia central era acabar não com um espaço, com um lugar, mas com o geraldino (Leiam o livro "Maracanã: quando a cidade era terreiro", de Luiz Antonio Simas).

Apoia-se nessa prática classista o discurso do "mas a geral era um lugar horroroso para se ver jogos, fizemos um estádio onde todos podem ver uma partida com conforto".

Quem é o "todos" da frase? O "todos" é quem pode pagar. Num país que afunda em miséria e a cada dia mais desigual, quem pode pagar? É a mesma lógica de quem diz de que o Brasil é ruim, mas pior é Cuba, onde as pessoas não podem sequer viajar para fora. Quem pode viajar nesse Brasil pós 2016?

Acontece que o Brasil é um país ainda mais peculiar. Aqui, não se separa classe de raça. Quando falamos em classe, estamos falando de raça - e vice-versa. Os motivos são concretos: fomos fundados para ser um projeto econômico de latifúndio exportador escravagista. Desde 1500 esse país é explorado por uma aristocracia ligada a interesses externos - e é assim até hoje. Somos os patriotas mais entreguistas do universo.

Prova disso é que depois de quase 400 anos de escravidão nunca houve verdadeiramente e na base uma política reparatória, indenizatória, inclusiva ou compensatória.

Apenas com Lula nos anos 2000 começamos a praticar políticas que visavam alguma inclusão social. As cotas mudaram a cara desse Brasil, mudaram a pulsão de transformação e de desejo. Em menos de duas décadas. Imagine o que pode acontecer se essas políticas se alargarem e se aprofundarem? É esse o medo da oligarquia que nos domina até hoje.

Justamente porque não se separa classe de raça nesse país, encarecer os ingressos e construir arenas ultramodernas que só podem ser frequentadas por quem é rico é uma política racista.

Meu amigo, o diretor de fotografia Luciano Xavier, que é flamenguista, me disse outro dia: veja como quando o Flamengo pratica preços mais baixos o Maracanã se escurece e veja como quando o Flamengo encarece os preços o Maracanã embranquece.

Luciano e eu, durante uma filmagem recente, falamos muito sobre a questão.

Ele sempre lembra que todo o contexto é orientado para que essa elitização seja alcançada: falta de transporte, acesso dificultado para quem é pobre no Brasil, para quem vem de longe, para quem mal tem dinheiro para fechar o mês e ainda precisa pagar para ver seu time pela TV.

Entre todos os times do Brasil, aquele que se denomina "do povo" teria que puxar o vento da mudança nesse destino elitizante de nosso futebol. Encontrar formas viáveis de fazer com que seu moderno estádio fosse majoritariamente ocupado pelo "povo": pobres, excluídos, torcidas organizadas, mulheres, crianças, desempregados.

Que o Corinthians fosse um ambiente acolhedor para aqueles que mais sofrem. Que fosse a casa dos excluídos. Que desse voz a eles e a elas. Que os pobres que ali chegassem fossem recebidos e tratados como reis e rainhas.