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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Se jogasse hoje Garrincha escutaria muitos "não precisava disso"

Garrincha foi ídolo do Botafogo - Universal/Corbis/VCG via Getty Images
Garrincha foi ídolo do Botafogo Imagem: Universal/Corbis/VCG via Getty Images

Colunista do UOL

23/06/2022 11h18

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O Corinthians e seus miúdos deram show contra um grande rival. Estádio lotado, noite encantada, goleada, gritos de olé - uma catarse para as corintianas e os corintianos.

Já no final do jogo, Mantuan, que fez sua melhor partida até aqui e foi essencial na construção da vitória, deu um lençol de almanaque, como dizem, em Kaiky, zagueiro santista. O garoto do Santos não revidou com botinada, mas foi lá cheio de marra avisar o Mantuan que essas coisas não se fazem.

Logo depois, Adson, o jovem craque que joga com enorme intensidade e alegria, fez uma firula pra cima da zaga e aí sim levou um sarrafo.

O que escutei em seguida foram críticas a Adson e nenhuma menção ao pontapé.

Como exatamente um drible bem dado é ofensa à honra?

Fazer eco a esse absurdo é colaborar para que masculinidades tóxicas sigam existindo e é, ao mesmo tempo, dar um carrinho sem bola em tudo o que o futebol representa.

O que diriam hoje dos dribles para trás de Garrincha? Não precisava, meu filho. Menos, Garrinchão!

Todos os dias o futebol oferece pra gente muitas performances de homens fragilizados em suas masculinidades, seja nos campos, nas arquibancadas ou nas mesas redondas em que ficam bastante tempo triangulando com piadas internas, elogiando o braço forte do colega, avaliando quem entre eles é melhor nisso ou naquilo; entregues a disputas públicas de território.

Muitas dessas mesas são, na verdade, um show masturbatório para quem está vendo. Parte-se do princípio de que a audiência é feita de pessoas iguais às que estão nas mesas - e isso não é verdade.

Às vezes, mesmo com uma mulher presente ao debate, a gente testemunha esse troca-troca sem fim, talvez até para dar uma deslocada na figura feminina que ousou se meter ali. Eles prefeririam estar entre eles, e alguns não conseguem esconder.

Todos esses ingredientes fazem parte da receita da masculinidade frágil e tóxica. É uma mesma corda de toxidade que, quando devidamente esticada, ao final do dia legitima o tapa, o abuso, o assédio, o assassinato.

Um drible cheio de estética e magia não faz de ninguém menos homem. Só uma masculinidade trêmula pode conferir a uma manobra legítima qualquer tipo de mancha à honra.

O futebol é também a firula, o lençol sem objetivo de gol, o drible para trás, os gritos de olé.

Querer que todas as ações visem eficiência objetiva e calculável deveria ser desejo de gerente de empresa de seguro e não de treinadores, dirigentes, comentaristas, torcedores.

O futebol existe na passada de pé sobre a bola sem nenhuma intenção aparente que não seja a de chamar o adversário para a dança.

Adson, por exemplo, no momento da firula estava segurando a bola no campo de ataque. Levar um gol do Santos não estava nos planos. Garantir o placar alargado sim. Por que ele não pode fazer a firula e chamar a torcida ao grito e ao êxtase? Por que não pode ser legalmente desarmado? Por que o lençol de Mantuan é ofensivo? O que sentem os ofendidos?

Livrar o futebol dessa masculinidade frágil e tóxica, despir o jogo dessa síndrome do pavio curto, é uma tarefa para as novas gerações: a dos miúdos e das miúdas.

Termino com trecho de um livro de Alan Watts: "Learning the Human Game" ou, em tradução livre, "Aprendendo o Jogo Humano"

"Na música, ninguém faz do final o objetivo. Se fosse assim, os melhores maestros seriam os que tocassem mais rápido; e existiriam compositores que só escreveriam finais. Pessoas iriam aos concertos para ouvirem apenas o último acorde — porque esse seria o final.

Mesma coisa na dança — você não busca um ponto particular na sala; onde você deveria chegar. O objetivo da dança é dançar.

Agora, mas não vemos isso ser traduzido pela nossa educação para nossa vida diária. Temos um sistema escolar que passa uma impressão diferente. É tudo em série — e o que fazemos é colocar uma criança em um corredor com um sistema de séries, com um tipo de "venha gatinho, aqui aqui aqui?".

E você vai por jardim de infância, e isso é ótimo, porque quando você finalizar, você vai para a primeira série. E então, veja, a primeira série leva pra segunda série, e assim por diante? E você sai da escola básica e vai o ensino superior - está acelerando, a coisa está chegando? Então você vai para a faculdade, e depois para a escola de graduação, e quando acaba a graduação, você sai pro mundo. E você consegue alguma ocupação como vendedor de seguro. E você tem uma meta para bater. E você vai batê-la.

Todo o tempo, aquela coisa está vindo, está vindo, está vindo — aquela grande coisa, o sucesso que você está se dedicando.

Então quando você acorda um dia aos 40 anos de idade, você diz "Meu Deus! Cheguei! Estou aqui!". E você não se sente muito diferente do que sempre sentiu. E há uma pequena tristeza, porque você sente que foi um trote. E foi um trote. Um trote terrível.

Eles fizeram você perder tudo. Por causa de expectativa.

Olhe para as pessoas que vivem para se aposentar, economizando dinheiro. E então quando eles têm 65 anos, e não têm mais nenhuma energia, são mais ou menos impotentes, eles vão e apodrecem em uma comunidade de cidadãos idosos.

Porque nós simplesmente traímos nós mesmos durante todo o caminho.

Nós pensamentos que a vida, por analogia, era uma jornada, uma peregrinação, que teria um sério objetivo no final. E o objetivo era chegar nesse final. Sucesso, ou o que quer que seja, talvez o paraíso depois que estivesse morto. Mas perdemos o espírito durante todo o caminho.

Era uma música, e nós deveríamos ter cantado, ou dançado, enquanto a música estava sendo tocada".