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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O ódio a mulheres é central na política

O presidente Jair Bolsonaro, ao lado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, durante solenidade na chegada do coração de D. Pedro 1º a Brasília, em 23 de agosto - Gabriela Biló/Folhapress
O presidente Jair Bolsonaro, ao lado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, durante solenidade na chegada do coração de D. Pedro 1º a Brasília, em 23 de agosto Imagem: Gabriela Biló/Folhapress

Colunista do UOL

02/09/2022 15h41

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É possível ser um homem heterossexual e odiar mulheres?

Eu diria que não apenas é possível como essa é a base da cultura heterossexual - é feita de ódio a mulheres e a tudo o que é feminino. E, por oposição, da adoração doentia das coisas associadas ao masculino.

Ir para a cama exclusivamente com mulheres não define nenhum tipo de amor pelas mulheres. Muitas vezes, aliás, é na cama que esse ódio fica mais forte. E é no dia-a-dia que a devoção pelo masculino é marcada: um homem vai buscar sempre a aprovação, a admiração, a atenção e o respeito de um outro homem.

Claro que o ódio de Jair pelas mulheres é bastante fácil de ser detectado. Até porque ele faz questão de enaltecer o que sente, usando o seu minúsculo vocabulário para deixar registrado o tamanho de sua repulsa.

Todos os que convivem graciosamente com alguém que acha que estupro é elogio também detestam mulheres, é evidente.

E muitas dessas pessoas são mulheres.

Quando Simone Tebet diz que é a favor da vida e, portanto, é contra o aborto, ela está dando uma declaração de ódio a mulheres.

Dessa vez, com recorte de raça e de classe, que é o grupo de mulheres que mais morre recorrendo a práticas inassistidas de interrupção de gravidez.

A declaração "a favor da vida" é, também, uma declaração de desprezo pelo sujeito feminino porque, ao colocar o aborto nesse lugar do pecado, do crime, do inominável, mesmo as mulheres que podem pagar pela intervenção clandestina o fazem cheias de culpa, de medo, de desespero e demoram muito para se recuperar emocionalmente - se é que se recuperam.

Quando revistas colocam uma presidente da República na capa associando seu comportamento como "não alinhado ao feminino", sugerindo que ela falava alto e era dura com subordinados, a violência simbólica está impressa e é ela que vai, inevitavelmente, levar a violências nem tão simbólicas assim.

Os que cometerem as violências serão chamados de lobos solitários, como se fossem um acidente do destino, como se não fizessem parte desse enorme circuito de misoginia e machismo que leva ao terrorismo puro e simples.

Quando as palavras Tchutchuca e Paquita são usadas com a finalidade de ridicularizar elas estão colocando em circulação o ódio pelas mulheres e pelas coisas femininas.

Muita gente que é de esquerda as usa alegremente.

E o fazem com bons índices de sucesso porque é nessa hora que Jair Bolsonaro acusa o golpe e sai mostrando toda a violência que o inunda: ele não suporta a ideia de ser associado a coisas femininas, a fraquejadas, ao desprezível universo do que ele acha que é ser mulher.

É tentador, eu sei.

Mas será que vale descer ao mesmo nível de misoginia dele para atacá-lo? Tenho dúvidas.

No debate da BAND, Ciro gargalha con gusto quando Bolsonaro vai pra cima de Vera Magalhães.

Ciro reagiu de imediato com o machismo e a misoginia que o moldam. Compactuou com seu colega cabra macho Jair. Não é a primeira e nem será a última vez que veremos machismo em Ciro Gomes.

Homens em ambientes cheios de masculinidade tendem a mostrar o pior neles mesmos.

Outro dia, o elegante e ponderado Tite fez a mesma coisa em um podcast, dizendo que vai liberar seus jogadores para darem uma aliviada durante a Copa do Qatar - e disse isso fazendo um gesto deselegante para deixar claro que se referia à penetração.

Reduzir sexo à penetração é reforçar a misoginia e o machismo na sociedade. É colocar a mulher em posição de objeto, de peça para alívio da tensão dos homens.

O filho de Tite, empregado da CBF, não faz muito tempo foi flagrado curtindo posts de conteúdo altamente misóginos.

O machismo é uma epidemia, é prática regular, é modo de vida.

Mesmo Lula, o mais preparado dos candidatos na luta contra o machismo e a misoginia, outro dia escorregou e disse: "quer bater em mulher vai bater em outro lugar".

Machismo e misoginia são desgraças mundiais, sem dúvida, mas o Brasil é um caso sério.

Tão sério que é mais perigoso ser mulher aqui do que no Afeganistão. Nós somos o quinto país mais perigoso para existir como mulher. O quinto que mais mata mulheres.

A mulher trans assassinada - e o Brasil é o país que mais mata LGBTQs no mundo - é assassinada com requintes de crueldade em 80% das vezes. É também aí que podemos constatar o tamanho do ódio ao feminino.

O Bolsonarismo, quando chega ao poder, chega reforçando esses marcadores de ódio e de desprezo a mulheres.

Damares Alves e suas políticas excludentes tiveram papel fundamental no aprofundamento desse ódio.

As piadas machistas usadas por Bolsonaro e por seus súditos trabalham seriamente para aumentar o machismo e a misoginia, mas o campo oposto, ao chamá-lo de "a louca da Cloroquina", de "Tchutchuca" e de "Paquita", atua alargando a dimensão do preconceito.

Ridicularizar o feminino é manter as coisas "de mulher" como inferiores, e o masculino, por oposição, como superior.

Estruturar assim o sistema sexo-gênero, acionar o feminino para desestabilizar e desprezar posições políticas, é continuar a construir uma sociedade que se autoriza a matar mulheres.

Nesse cenário, pessoas de esquerda e de direita vão interromper, agredir, ofender, diminuir, bater, violentar, abusar, estuprar, esquartejar e assassinar mulheres.

Nesse cenário, nossos líderes democraticamente eleitos - de direita ou de esquerda, em maior ou menor grau - não vão trabalhar por políticas públicas para mulheres.

Políticas que coloquem, por exemplo, creches públicas e aborto legal e gratuito como necessidades centrais.

Políticas que falem da verdadeira família brasileira, composta por mães-solo, mulheres periféricas e LGBTQs.

Políticas que destruam a ideia da família tradicional, sempre branca, sempre hierárquica: papai manda, mamãe obedece. Papai trabalha, mamãe cuida da casa e dos filhos por amor. Papai trai livremente, mamãe se trair morre.

Defender ardentemente a família tradicional é defender justamente essa noção de hierarquia, o masculino sobreposto ao feminino, a obediência e a servitude da mulher. É essa a defesa que Bolsonaro faz da família.

É um desenho fascista de família, a arquitetura da ordem divina e, não por acaso, Bolsonaro se sente cada vez mais à vontade para vomitar o lema integralista - e portanto fascista - do "Deus, Pátria, Família".

Não se opor a esse conceito de família é reforçar a repulsa ao universo dos valores atribuídos ao feminino.

O ódio a mulheres é, portanto, central na política brasileira hoje.

Por oposição, ele reforça a ideia do homem viril, violento, autoritário.

Um homem que, por direito divino, pode sacar sua arma e atentar contra a vida de uma vice-presidente.

Um homem que, por direito divino, pode sugerir que a jornalista que fez uma pergunta legítima quer mesmo é dar para ele.

Um homem que, por direito divino, pode colocar sua tropa enfurecida para ofender, oprimir e silenciar uma mulher grávida.

Essa ideia de homem, para que possamos sobreviver, precisa morrer.