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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Obsessão com morte de Rainha dá a real medida de nossa emancipação

Corpo da rainha Elizabeth é levado em caixão de carvalho - Jeff J Mitchell / Equipe via getty
Corpo da rainha Elizabeth é levado em caixão de carvalho Imagem: Jeff J Mitchell / Equipe via getty

Colunista do UOL

11/09/2022 14h48

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Estamos acompanhando o minuto-a-minuto da morte da Rainha Elizabeth e talvez devessemos nos perguntar por que sua morte gera tanto interesse.

A Rainha do Reino Unido não era exatamente conhecida por ser uma pessoa ligada a causas sociais, o que talvez justificasse o apego em relação a sua passagem.

A Rainha, muito pelo contrário e para dizer o mínimo, foi uma pessoa que compactuou com o Apartheid, com a ditadura e com todos os horrores do colonialismo e da colonialidade que até hoje colocam nações inteiras como territórios a serem explorados e saqueados.

Tendemos a simpatizar com pessoas que vivem muito, que envelhecem e adquirem um ar de delicadeza e de doçura, verdade.

Tendemos a apreciar pessoas de gestos curtos, de poucas palavras, de vestimentas elegantes, outra verdade.

E, claro, tendemos a supervalorizar pessoas muito ricas por nenhum outro motivo que não seja sua riqueza, especialmente se elas podem legalmente ser chamadas de Rainha.

Mas, olhada de perto, a Monarquia é em si um horror.

Uma família que vive nababescamente e há séculos de rendas acumuladas por saques, guerras e exploração colonial.

Não temos, a rigor, nada a ver com a Rainha.

Isso não nos desobriga de prestar solidariedade a quem de direito porque perder pessoas que amamos é sempre dolorido.

Perdi minha avó aos 99 anos e devo dizer que, ainda assim, me pareceu inesperado e precoce que ela me deixasse.

A morte de Diana talvez justificasse o frenesi midiático: jovem, ligada a causas sociais, um fim trágico.

Mas a da Rainha não precisaria de uma cobertura tão extensa, tão detalhada, tão colonizada.

O papel da Inglaterra durante todos os anos em que o Brasil (ainda legalmente uma colônia portuguesa) foi explorado e saqueado não pode ser chamado de amigável ou de saudável.

Nossas riquezas, fruto do incansável trabalho dos povos escravizados, eram extraídas para proveito da Inglaterra e de sua Monarquia.

O arrebatamento com a morte de uma pessoa que nunca fez nada para resgatar os povos oprimidos e explorados desse planeta, ainda que tivesse poder para isso, dá a real medida de nossa independência.

Sete de setembro não significa grande coisa.

A data, sequestrada por Jair Bolsonaro para celebrar sua suposta virilidade, é mais ou menos isso: uma data que, de tão irreal, é desprezível a ponto de ser sequestrável.

Um dia, quando virarmos uma nação de fato independente, derrubaremos todas as estátuas dos Bandeirantes, arrancaremos os nomes das ruas que homenageiam torturadores e encerraremos a comemoração de datas mentirosas.

No lugar delas, colocaremos no calendário oficial os feriados do dia do nascimento de Carolina Maria de Jesus, o dia de Zumbi dos Palmares, de Dandara dos Palmares, de André Rebouças, de Marielle e de tantas e tantos outros.

Nesse dia, teremos encontrado nossos reis e rainhas aqui mesmo.

Porque elas e eles estão aí, na luta do dia a dia, nos transportes públicos, nas fábricas, enterrando seus filhos sem direito a pedir justiça mas também nos terreiros, nas florestas, nas festas de rua e na violenta, ainda que silenciosa, luta por um Brasil de fato emancipado.