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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na história de Luva de Pedreiro, nosso melhor e nosso pior

Colunista do UOL

13/09/2022 13h43

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Iran de Santana Alves é um jovem como milhões de outros desse país: periférico, sonhador e apaixonado por futebol.

No quintal da sua casa no interior da Bahia e num campinho de terra batida do bairro, Iran começou a fazer uns vídeos para mostrar nas redes sociais toda a sua habilidade com a bola nos pés.

Decidiu ornamentar as pequenas produções usando uma luva de pedreiro, equipamento bastante popular e útil para tantas pequenas obras. Batizou sua personagem midiática com o nome de Luva de Pedreiro.

Se Iran chegasse com essas propostas para um marketeiro, causaria estranhamento. Imagine o diálogo:

"Minha ideia é me filmar chutando uma bola no gol num chão de terra batida usando uma luva de pedreiro"

"Tá, mas o que mais?"

"Se eu fizer o gol, eu ajoelho, olho para cima e digo bem forte assim: receba!"

"E?"

"E é isso"

Não acho que houvesse quem acreditasse que Iran poderia viralizar. Mas ele viralizou.

Nessa nossa sociedade de tantos sonhos materiais, de tanta miséria e de poucas realizações, Luva de Pedreiro era um bem-vindo respiro para a dimensão das coisas mais simples.

Um campinho, uma bola, um chute bem colocado, a celebração.

Quem gosta de futebol sabe exatamente que tipo de afetos Luva movimenta com suas postagens.

Recebemos, agradecidos, todos aqueles vídeos que ele postava sem parar.

Mas isso não basta nessa sociedade do consumo.

Luva de Pedreiro, meu filho, você pode mais. Pode ser milionário. Vem comigo que te mostro o caminho.

E lá foi o Luva.

Beijou o chão de São Januário, conheceu famosos, viu final da Champions, foi paparicado por gente que ele queria paparicar.

Um arranjo social como esse, que forma ídolos em questão de minutos, só pode dar certo se ele mesmo for capaz de acabar com os ídolos que formou.

Afinal, só somos proprietários daquilo que podemos destruir.

Essa é a base da propriedade. Se você não pode destruir, você não é proprietário, você apenas tem o usufruto. E o usufruto, dizem, não basta.

É preciso querer mais. Sempre mais. Um milhão de seguidores? Então você pode ter dois milhões.

Um milhão de reais? Não basta, olha em volta, tem gente com mais do que isso. Bora trabalhar para fazer mais.

Mais, mais, mais. Sempre mais.

Não desiste agora. Eu posso fazer você ganhar ainda mais. Você é um bom produto, uma mercadoria em demanda.

É um imperativo moral querer mais.

Uma casa? Não! Duas. Um carro apenas? Ah, é preciso mais. Uma fazenda? Bobagem. Aquele cara ali tem três.

E assim seguimos em busca de um horizonte que nunca chega, nem vai chegar.

É o caminho para a destruição. Para a tristeza. Para a depressão.

Luva de Pedreiro diz que desistiu dessa vida. Que quer sossego. Seu olhar entristeceu, ele quase já não sorri.

Passa pela cabeça que Luva pode estar ensaiando uma nova jogada de marketing? Passa, claro. Mas talvez seu olhar entristecido carregue a verdade mais dura: ele não parece estar feliz.

Tomara que Luva encontre a paz que busca.

Que descubra quem é na essência para além de um garoto criativo e bom de bola que mediou sua existência pelas redes sociais e pelo interesse de terceiros.

Toda a sorte do mundo, Iran. Que a vida ainda te ofereça muitas possibilidades de colocar a bola no ângulo de uma trave sem rede num campinho de terra batida. Não há felicidade muito maior do que essa.