Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Milton Neves, Douglas Luiz e a extensão do machismo no futebol
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Acho que não há quem goste de futebol, jovens ou velhos, e desconheça Milton Neves. Todo mundo que ama esse jogo sabe quem é e tem uma opinião sobre ele. O que não está em disputa é o talento do profissional para comunicar. Gostemos ou não, trata-se de um dos maiores comunicadores do Brasil.
É articulado, tem uma memória invejável e fala o que vem à cabeça - para o bem e para o mal. Justamente por ser um dos maiores comunicadores desse país, as coisas que ele diz têm relevância.
Nessa terça-feira 27 de setembro, Milton Neves repostou o vídeo de Alisha Lehmann, jogadora do Aston Villa, fazendo um comentário que sexualizava a atleta.
Um comentário como esse, feito há dez anos, talvez passasse sem ser notado.
Nesse caso, o que veríamos nas respostas à postagem seria um monte de homens celebrando suas próprias masculinidade usando o corpo de Lehmann como veículo.
Um espetáculo masturbatório - como ainda vemos muito atualmente. Viraria um ambiente de altíssima masculinidade tóxica e ficaria por isso mesmo.
Mas o mundo vai mudando e algumas coisas não são mais aceitáveis ou toleráveis. Tão logo Milton Neves postou, as reações contrárias começaram.
A sexualização do corpo da mulher é o começo de uma trilha cujo destino final é o assassinato desses corpos. É nos colocar na prateleira como qualquer outra mercadoria. Estamos ali para ser consumidas. E aos pedaços.
É o começo de um filme de terror para qualquer mulher porque é assim que tem início a noção de que nossos corpos são propriedades. Se estamos nas prateleiras, estamos à venda.
E, a bem da verdade, todos sabem que só somos verdadeiramente donos daquilo que podemos destruir.
Genitalizar uma mulher é diminuí-la ao nível da desumanização. É esse o conceito que autoriza assédios, abusos, estupros e mortes.
A luta que estamos travando é uma que exige que sejamos vistas como sujeitos plenos. Não somos partes, não estamos aqui para oferecer prazer a homens, não nos reduzimos a fragmentos.
"Ah, mas ela mesma expõe o corpo dela nas redes", argumentam alguns, sugerindo na sequência que "ela se dê ao respeito", como se uma mulher, para merecer respeito, tivesse que se recolher.
É o mantra da "bela, recatada e do lar", a noção de que uma mulher só pode existir em duas dimensões: ou é puta ou é santa. Não existe nada além dessas duas chaves. Putas são as outras, santas são as mulheres da minha vida.
Somos putas e somos santas se assim desejarmos. E somos uma infinidade de sujeitos entre uma e outra.
Antes de mais nada, faz parte da construção da nossa autoestima que possamos mostrar nossos corpos sem nos sentir ameaçadas ou sem que digam que estamos fazendo isso para excitar os homens.
É difícil para muitos aceitar o fato de que fazemos isso para alargar nosso campo de poder e autonomia sobre nossos corpos.
Fazemos porque deveríamos viver num mundo em que pudéssemos ser suficientemente livres para nos mostrar sem que com isso estivéssemos autorizando que, sobre nossos corpos, vocês podem perder o respeito.
Imediatamente depois da postagem de Milton Neves, Douglas Luiz reagiu. "É minha namorada", escreveu. E se não fosse?
O caso passou a ser tratado como "a postagem machista que Milton Neves fez com a namorada de Douglas Luiz".
Pronto. Apagou-se o nome de Lehmann.
Passou a ser treta entre dois homens a respeito de um corpo feminino sem nome mas com propriedade - de Douglas Luiz.
A reação do atleta brasileiro é, também, salpicada de machismo.
Ele reagiria se a jogadora não fosse sua namorada? Reage apenas porque acha que tem algum poder sobre ela e seu corpo?
Reações de indignação de homens alinhados à luta feminista são mais do que bem-vindas: elas são fundamentais. Mas é preciso entender o que algumas dessas reações dizem.
Alegar "e se fosse sua namorada?" como crítica à postagem de Milton Neves é legítimo, mas com limites.
Deveríamos ser mais do que um parentesco para que fôssemos livres para jogar bola com o short que bem entendêssemos, para andar na rua sem ter medo de ser abusada ou estuprada.
O mundo está mudando, mas talvez não tão rapidamente como gostaríamos. Estamos morrendo e sendo estupradas e a cultura heterossexual de masculinidade frágil e tóxica é a responsável por isso. A crítica a ela começa sim com a crítica a uma postagem.
Não somos chatas; apenas berramos porque estamos morrendo.
Termino com a filósofa Marilyn Frye, cujas palavras são potentes e eloquentes:
"Dizer que um homem é heterossexual implica somente que ele mantém relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto, ou seja, mulheres. Tudo ou quase tudo que é próprio do amor, a maioria dos homens hétero reservam exclusivamente para outros homens. As pessoas que eles admiram; respeitam; adoram e veneram; honram; quem eles imitam, idolatram e com quem criam vínculos mais profundos; a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender; aqueles cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam: estes são, em sua maioria esmagadora, outros homens. Em suas relações com mulheres, o que é visto como respeito é gentileza, generosidade ou paternalismo; o que é visto como honra é a colocação da mulher em uma redoma. Das mulheres eles querem devoção, servitude e sexo. A cultura heterossexual masculina é homoafetiva; ela cultiva o amor pelos homens"
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