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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Abel, me ajuda a segurar essa barra que é gostar de você

Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, em jogo contra o Botafogo pelo Brasileirão - Thiago Ribeiro/AGIF
Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, em jogo contra o Botafogo pelo Brasileirão Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

Colunista do UOL

04/10/2022 16h25

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Eu vou ter que pedir licença outra vez ao Raça Negra para usar parte da letra do pagode Cheia de Manias. É que a frase diz muita coisa e se encaixa bem demais a algumas situações. Vamos lá, no ritmo de um bom pagode:

O capricorniano Abel Ferreira deve ter a lua em Áries porque isso explicaria o temperamento explosivo.

Tenho total lugar de fala para dizer isso porque eu tenho a lua e Áries mas, como sou mulher, se me comportar de um jeito destemperado e explosivo em público, não duro nem dez minutos. Só um homem branco pode passar agindo assim pela vida.

A verdade é que me identifico com a indignação de Abel à beira do gramado e até com algumas reações diante de perguntas desajeitadas.

É normal que a gente, dependendo do dia, tenha mais ou menos paciência com a vida e com as pessoas.

O que não é normal, e não pode ser normalizado, é que sejamos deseducados com quem está, como nós mesmos, apenas trabalhando.

Abel reagiu grosseiramente à pergunta até elogiosa de um repórter e, no dia seguinte, disse que havia entendido errado a pergunta.

Vendo a imagem, parece mesmo que Abel entendeu errado na hora mas, mesmo que a pergunta tivesse sido ruim, será que a reação agressiva seria justificável?

O tom do repórter era um tom educado e conciliador, e isso talvez pudesse ter servido para que a resposta fosse elaborada: usar o mesmo tom do interlocutor é de bom gosto.

Mas também entendo que, diante de situações de injustiça na vida, reações mais duras são aceitáveis.

Acho que todo mundo que gosta de futebol já xingou o juiz, já quis invadir o campo, já se imaginou engalfinhado com a arbitragem ruim, já compreendeu e concordou com o treinador que tem chiliques do lado de fora do gramado.

Tudo isso é do jogo. Nossa missão é a de frear reações mais destemperadas e evitar o confronto violento - a menos que a violência seja, na verdade, contra-violência.

Um repórter que está na coletiva é um trabalhador como Abel.

Mesmo aqueles que fazem perguntas mais desajeitadas ou bobas deveriam ser tratados com algum respeito. Muitas vezes é a pergunta aparentemente boba que resulta na melhor resposta.

A coletiva de imprensa é o ambiente dentro do qual o treinador e o jogador falam com a torcida. O jornalista é o mensageiro apenas.

Abel parece sempre enfadado nas entrevistas, mesmo depois de vitórias importantes.

É como se ele jogasse contra todas e todos nós o tempo inteiro. As coletivas são tensas e, por vezes, constrangedoras.

O conflito é parte da democracia. Acha que não haverá conflito de ideias é uma ingenuidade. E escapar deles é uma infantilidade.

Mas o melhor é entrar neles como quem entra numa arena dentro da qual pensamentos podem circular livremente desde que não ofendam, humilhem, oprimam, colonizem.

Já disse antes e ou repetir: acho que Abel deverá ter uma estátua no Palmeiras.

É o maior treinador que o clube já teve e pode conquistar muitas outras coisas com essa camisa.

É jovem, tem talento inquestionável e ainda muitas glórias pela frente.

O livro que ele escreveu é excelente, a entrevista dele no Roda Viva idem. Abel tem muito a dizer e muito a ensinar.

Se eu fosse palmeirense teria um poster dele em minha casa certamente.

Só que Abel bem que poderia procurar entender melhor o que é o Brasil e do que somos feitos.

Um país colonizado por três séculos é um país cheio de cicatrizes e feridas ainda abertas, especialmente um país que tem uma história peculiar de extermínios, explorações e genocídios.

Se um Europeu chega aqui e age como ele muitas vezes age, a agressão é sentida em dobro nas nossas peles. Se eu fosse a repórter na coletiva pós jogo com o Botafogo acho que teria chorado com a reação dele.

Trauma é uma coisa complicada porque faz a gente muitas vezes se encolher antes mesmo de levar a pancada.

A necessidade de sermos mais respeitosos uns com os outros é da ordem do dia.

Vale para Abel, para nós jornalistas, para jogadores, torcedores e dirigentes.

Formar sujeitos homens alinhados a comportamentos menos bélicos, agressivos e confrontadores é o que pode nos tirar desse lugar onde viemos parar; um no qual o futuro de nossa própria espécie está ameaçado.

Deixo como dica de podcast para entender do que é feito esse país o Projeto Querino. Oito episódios que certamente deixarão você atônito. Ouça e repassem até chegar no Abel.