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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jair: Do elogio ao estupro de mulheres até o abuso sexual em animais

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia alusiva ao Dia Internacional da Mulher, no Palácio do Planalto - Fátima Meira/Futura Press/Estadão Conteúdo
O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia alusiva ao Dia Internacional da Mulher, no Palácio do Planalto Imagem: Fátima Meira/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

08/10/2022 09h56

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Há verdades sobre Jair Bolsonaro que talvez precisem ser mais esmiuçadas antes do dia 30, e a exaltação que ele faz à cultura do estupro é uma delas.

Vamos entender que tipo de aberrações estão por trás do pensamento de Bolsonaro a respeito do estupro?

Em 2003, Bolsonaro disse a uma colega de trabalho no salão verde da Câmara dos deputados, depois de um bate-boca, a seguinte frase: "eu só não te estupro porque você não merece".

Em uma declaração de nove palavras, Bolsonaro faz um elogio ao crime de estupro como nunca antes havia sido tentado por ninguém mais na vida pública - em nenhum país do mundo, nem mesmo nas ditaduras sanguinárias que obrigam mulheres a andarem de burca.

Estupro, para Bolsonaro, é merecimento.

A colega, segundo ele, não merecia a deferência de ter a roupa arrancada, as pernas abertas, o corpo invadido pelo pênis rígido do poder masculino contra a sua vontade.

Onze anos depois, agora em plenário, Bolsonaro repete a frase, com ênfase, para a mesma colega.

As mulheres presentes se revoltam, o então deputado sorri e é celebrado por outros colegas.

Quem é mulher entende as camadas de violência que a frase carrega.

Quem é mulher já sentiu abusos na pele.

Mas talvez nem seja preciso existir em corpo de mulher para saber da violência que a declaração carrega.

Talvez baste ter uma filha, uma namorada, uma sobrinha, uma tia, uma amiga.

Bolsonaro realmente acredita que algumas mulheres merecem - e outras não - serem estupradas.

O merecimento aqui não é uma punição - o que já seria da ordem da barbárie.

O merecimento, para ele, é elogio.

Se você for avaliada por ele como gostosa, você é estuprável e ele poderia, se estivesse a fim, te conceder o privilégio do estupro.

Não surpreende.

Bolsonaro tem como herói de vida um torturador que levava crianças pelas mãos para ver suas mães serem estupradas.

Vou repetir: o herói de Bolsonaro - aquele cujo livro ele diz ter em sua cabeceira - levava pelas mãos crianças para assistirem ao estupro de suas mães.

O nome do monstro terrorista é Brilhante Ustra e Jair Bolsonaro, sempre que pode, rende a ele homenagens.

Nunca antes houve um militar - nem mesmo os ditadores - que elogiaram a tortura. Perguntados, eles desconversavam, diziam que não tinham controle sobre tudo, indiretamente reconheciam o horror.

Não estou dizendo o que acho que aconteceu.

Não estou inventando episódios, nem declarações.

Estou relatando a verdade nua, crua e cruel. Fatos.

O mesmo Bolsonaro disse que perdeu a virgindade comendo galinhas.

Vamos parar e pensar a respeito.

A galinha, um ser vivo e indefeso, foi arregaçada por um jovem Bolsonaro que queria gozar.

É essa a masculinidade que Jair Bolsonaro exalta.

Para Bolsonaro, no mundo há apenas o homem branco e seus desejos e, depois dele, todo o resto.

Mulheres e galinhas numa mesma prateleira de bestialidade.

Muito se diz sobre Bolsonaro detestar mulheres, e há uma centena de outros episódios que comprovam isso, mas talvez baste falar do que ele pensa a respeito do estupro.

O estupro é uma cultura.

Ele é sobre poder, não sobre sexo. É sobre dor, não sobre prazer.

É recurso usado para colocar a mulher em seu devido lugar, dizer quem manda.

É arma de guerra no mundo todo.

No Brasil, uma mulher é estuprada a cada oito minutos.

Esse é um número subnotificado. Em até nove vezes, indicam estudos.

Por que não relatamos na maioria das vezes?

Por muitos motivos, mas o principal talvez seja porque sabemos que ir até uma delegacia e dizer "fui estuprada" é, de forma imediata, ser julgada e colocada no banco do réu: o que estava vestindo? Estava sozinha? Tem como provar? Bebeu? Deu mole?

Em seguida, o Estado faz com que a mulher repita a história 15, 20 vezes. Ela é obrigada a reviver o crime e acaba desistindo da denúncia.

Em quase 70% dos casos a vítima é criança ou adolescente.

Em 89%, o estupro é cometido por um conhecido: amigo, namorado, colega de trabalho, pai, avô, tio?

Ocorre, portanto, em casa.

Quando a criança ou a adolescente conta para alguém na família, a resposta muitas vezes é: mas por que você passou de biquíni na porta do quarto do seu tio? Não faça mais isso.

O estupro é uma cultura.

Até 2002, se um homem estuprasse uma mulher e depois casasse com ela não haveria punição. Era a lei. Um homem que estuprasse uma menina de 15 anos e casasse com ela não seria punido.

Não que hoje sejam. Mais de 90% dos acusados não são.

E apenas 3% das denúncias são declaradas falsas. Indico o livro da filósofa e pesquisadora Amia Srinivasan, "Direito ao Sexo" que, entre outras coisas, detalha as falsas acusações.

O estupro é uma cultura que visa silenciar e domesticar corpos femininos.

Mas, tecnicamente, o que é o estupro?

Estupro não precisa envolver nem penetração nem pênis.

Qualquer ato libidinoso praticado sem consentimento ou com a vítima desacordada é estupro.

Na balada, embebedar a garota e forçá-la a qualquer ato libidinoso é estupro.

Você que lê essas linhas, será que você já estuprou alguém?

Se estuprou, você liga para o que fez ou acha que é do jogo?

Se não liga, o que pensaria se a mulher fosse sua irmã, sua mãe, sua namorada?

Aí a coisa muda.

Porque nessa sociedade machista a mulher só existe em duas chaves: ou é puta ou é santa.

A masculinidade que Bolsonaro defende assim nos encaixa.

Somos propriedades e temos rótulos.

Essa é a ideia de sociedade que Bolsonaro defende: a mulher submissa, o homem soberano.

Quando essa ideia de sociedade começa a se formar?

No nascimento.

O menino é o do "saco roxo", "vai ser pegador", "olha o tamanho do pau".

A menina é a fraquejada, nessa ninguém vai tocar, fecha as pernas, dê-se ao respeito, garota.

Nesse momento, os papéis sociais estão traçados.

O homem manda, a mulher obedece.

O homem é servido, a mulher serve.

Na vida, na cama, no trabalho.

Essa é a sociedade que Bolsonaro celebra.

Ele não tem um plano de governo; tem um projeto de sociedade.

Não estou dizendo o que eu acho. Estou dizendo o que Jair Bolsonaro diz e faz.

Ser mulher e votar em Jair Bolsonaro é da ordem do inegociável, do descabido, do intolerável.

Mulheres sabem disso. A maioria.

Mas numa sociedade assim organizada não é incomum que o homem exija que a mulher vote no candidato dele.

O contrário não é corriqueiro.

O que toda mulher nessa situação precisa saber é que o voto é secreto.

Não tem como o sujeito descobrir em quem você votou.

Nem se ele quebrar a urna para ver o que tá lá dentro.

Nem se ameaçar agredir o mesário para ver voto, nem se disser que vai entrar com recurso para ver quem votou como naquela urna.

Não tem como ele saber em quem você votou.

É como fingir o orgasmo: nunca saberão.

Então, se esse for seu caso, entra na urna e vota no candidato que não exalta a cultura do estupro.

Vota por você, por suas filhas, por sua mãe, por suas amigas, pelas futuras gerações.

Se esse for o seu caso, vote no candidato que não detesta mulher - e depois minta. Diga que votou no capitão.

Quando as democracias começam a morrer uma das primeiras coisas que a gente perde de vista é o controle - mínimo que seja - sobre nossos corpos.

O que podem dizer sobre Lula e sua frente ampla que se compare a isso?

Ainda que Bolsonaro não estivesse ligado a dezenas de escândalos que envolvem desvios da ordem de bilhões do dinheiro público, ainda que ele não estivesse tão perto de milícias e de milicianos, o que ele pensa a respeito do estupro bastaria para que não houvesse uma pessoa - nem a mãe dele - disposta a votar nele.

Nada do que Lula e o PT possam ter feito tem paralelo com essa aberração. Nada, absolutamente nada.

Nenhuma acusação - mesmo todas as que jamais foram provadas - se compara a isso.

Quem se convence de que vai votar em Bolsonaro porque "o PT roubou muito" está mentindo para si mesmo.

E aí volta para o texto anterior que fala do Mensalão do Bolsonaro, chamado pela mídia de Orçamento Secreto.

Quem, diante desse horror, justifica o voto nesse monstro repetindo a frase "se o PT ganhar o Brasil vai virar uma Venezuela" não tem a mínima ideia do que está dizendo.

A mais vaga ideia.

Não sabem sequer localizar a Venezuela no mapa.

Não sabem quem foi Hugo Chávez, não sabem o que aconteceu por lá, não sabem quem é Maduro, não sabem coisa nenhuma sobre a história venezuelana.

Não estou criticando ou celebrando a Venezuela.

Estou dizendo que aqueles que repetem essa frase são absolutamente ignorantes a respeito do que estão dizendo.

Estão apenas justificando seus próprios horrores éticos com uma frase vazia que, se tivessem que explicar, não conseguiriam.

Não é na Venezuela que tem gente correndo atrás de caminhão de lixo para ver se acha o que comer.

Não é na Venezuela que tem gente comendo pó de osso.

Não é na Venezuela que existem 33 milhões de famintos, que uma em cada quatro crianças não sabe se vai fazer a próxima refeição, que tem 125 milhões de cidadãos vivendo em insegurança alimentar, que o número de pessoas em situação de rua nas grandes cidades cresce a olhos vistos.

Não foi na Venezuela que morreram 700 mil pessoas na pandemia.

Não é na Venezuela, minha gente.

É aqui.

Mas se quiserem projetar futuros com base em algum dado minimamente real e verificável, digam que se Bolsonaro vencer o Brasil virará o Irã.

O controle dos corpos femininos, a completa submissão da mulher, o fim de qualquer política igualitária.

Pelo menos sejam coerentes com a verdade como ela está sendo escancarada nas nossas caras.

Esqueçam a Venezuela, sobre a qual pouco sabemos, e pensem no Irã, sobre o qual podemos não saber muita coisa mas sabemos pelo menos qual o papel da mulher na sociedade iraniana.

Estudem o que aconteceu com o Irã entre 1970 e agora. Como era e o que virou. Como era e por que virou.

Querem comparar? Comparem com alguma base de dados, e não movidos por paranoias, ignorâncias e delírios.

A irracionalidade das escolhas é um traço fundamental do fascismo. Isso é a história que diz.

É o que deveríamos ter aprendido com o que a humanidade já viveu: a irracionalidade das escolhas é um traço fundamental do fascismo.

Repetir que vai votar em Bolsonaro porque, caso contrário, "o Brasil vai virar uma Venezuela" sem ter a mais remota ideia do que se diz é uma característica do fascista.

O voto em Bolsonaro não é um voto aceitável sob centenas de aspectos - esse de que ele celebra a cultura do estupro é apenas um deles.

Que deveria bastar.

Mas tem que vote em Bolsonaro porque concorda com ele e acredita que estupro não é coisa grave, que mulher nasceu para servir, que o homem é superior, que é ele que manda, que tá tudo bem ser agressivo, bater, que mulher tem que calar, que mulher precisa ser bela, recatada e do lar.

Nesse caso, nada podemos fazer.

Temos apenas que saber que essas pessoas, cedo ou tarde, terão que se olhar no espelho e dizer a si mesmas quais os reais motivos que a levaram a votar em um homem que é, entre outros horrores, um promotor da cultura do estupro.