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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como Bolsonaro transforma pulsão de morte em votos

Colunista do UOL

18/10/2022 16h11

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Um dos momentos mais reveladores do debate presidencial desse domingo 16 de outubro aconteceu quando Jair Bolsonaro disse que na visita que Lula fez ao complexo do Alemão (que Bolsonaro chamou equivocadamente de Salgueiro) só tinha traficante.

Lula usou seu tempo para responder de forma decente, lembrando que favela é lugar de gente trabalhadora, mas se o debate fica no ambiente de "uma palavra contra a outra" tudo passa a ser opinião e, nesse cenário, cada eleitor que decida pra quem torce.

Não é bem assim - ou não deveria ser.

O correto seria o debate ser interrompido e uma voz mediadora deixar a verdade na mesa em forma de editorial.

Se Lula tivesse dito que no Leblon só tem bandido será que as palavras passariam sem que alguém berrasse, sem que alguém ameaçasse meter um processo?

A criminalização de quem mora na favela não deveria ser aceitável, mas é.

Se não fosse, os mediadores fariam no ato um manifesto para contextualizar a violência contida nas palavras de Bolsonaro.

Bolsonaro não disse essas palavras agressivas sem entender perfeitamente o que estava fazendo.

O bolsonarismo tem um método e seria hora de entendermos que ele é eficaz.

Esse método trabalha com nossos traumas, nossas dores, nossa história. Ele captura sentimentos pulsantes, mobiliza emoções e gera ações.

Política, como ensina o professor Vladimir Safatle, é sobre circuito de afetos e não apenas sobre a circulação de normas e leis.

Ela fala de como somos afetados: o que sentimos e o que não sentimos. O que vemos e não vemos. O que percebemos e não percebemos.

"A maneira como eu vejo, como eu sinto e como eu percebo determina o que causa a minha ação, o que causa o meu julgamento." (Safatle).

Uma das questões fundamentais do poder, segue Safatle, é, portanto, como organizar o campo do que é visto, sentido e percebido.

Com isso em mente, vamos falar de alguns fatos nem sempre trazidos à tona e que ajudam a explicar por que aceitamos tão passivamente uma colocação como a que Bolsonaro fez ontem a respeito das pessoas que vivem nas favelas e periferias do Brasil.

Tem quem ainda goste de dizer que a história do Brasil é uma história amena, sem grandes guerras ou tragédias.

Argumentam que somos uma democracia racial, exemplo para o mundo. O diretor de jornalismo da Globo, Ali Kamel, chegou a escrever um livro cujo título é "Não Somos Racistas".

Diretor geral de jornalismo da Globo.

Mas a história, quando a gente analisa, fatos e dados, não é essa. Muito pelo contrário.

Vou pedir aqui a ajuda do professor Silvio Almeida: advogado, filósofo e intelectual.

Silvio Almeida lembra que para os trabalhadores, negros, indígenas e pobres a história do Brasil é uma tragédia cercada de golpes.

Uma tragédia em termos sociais, políticos e institucionais.

Para o professor, o Brasil só não é uma plena tragédia porque a resistência popular conseguiu construir certos modos de vida que preservam algumas das coisas que o Brasil gerou e produziu de melhor.

Primeiro fato que precisa sempre ser trazido para as análises do que somos e de como vivemos: temos que considerar o que foi a escravidão.

O que faz parte da fundação desse país a partir do momento que as caravelas chegaram?

Ocupação ilegítima de terra e exploração.

Nossa certidão de nascimento deveria indicar que fomos - e somos ainda em alguma medida - um projeto econômico de latifúndio exportador e explorador escravagista.

Boa parte da riqueza europeia dos séculos 16, 17, 18 foi acumulada graças a essa exploração.

A escravidão, sistema econômico que permitiu que tanta riqueza fosse gerada e acumulada, é um trauma que está na base da produção do imaginário sócio-politico.

Vem daí, como vamos entender em instantes, a nossa tolerância à desigualdade.

A banalização da morte e a desvalorização da vida são traumas que nunca foram tratados.

Toda vez que temos uma crise isso volta com força para minar até mesmo o que foi construído de forma positiva.

Volta para expor o que temos de pior, diz o professor. Ainda ele:

A economia mundial contemporanêa foi constituída sob o signo do neocolonialismo, das práticas coloniais.

Aqui a gente para e estabelece o que é o colonialismo.

O colonialismo não é só a invasão de terras não-europeias.

E ele não acabou numa data específica.

O que acabou foi a estrutura jurídica que o organizava formalmente.

Depois dessa morte formal, as práticas coloniais se tornaram tecnologias de poder que são usadas pelas antigas colônias contra suas populações, hoje tratadas como eram tratados os habitantes das colonias.

Mas ele é mais do que isso, ensina o professor: o colonialismo é também um projeto de construção subjetiva.

Percebam que não estamos falando de achismos. Estamos contextualizando a história desse país sobre fatos.

Para você estabelecer um regime de exploração colonial você precisa desconsiderar completamente a possibilidade das pessoas exploradas pertencerem ao mesmo mundo que você.

Mais do que isso: para que você atue com a força necessária para seguir explorando, você precisar criar uma estrutura que desconsidere que essas pessoas pertençam ao mesmo gênero que você, o gênero humano.

É preciso desconsiderar a possibilidade de o outro partilhar uma vida - costumes, ambientes, sonhos - com você.

É preciso criar uma alteridade radical. E, lembra Silvio Almeida, não é facil criar uma coisa dessas.

Porque o mais usual seria que nos reconhecêssemos em nossas dores e desejos. É assim quando nos encontramos olhando nos olhos uns dos outros. A experiência humana é carregada de comuns: perdas, finitude, sofrimentos.

Então, para criar essa situação, para criar essa separação, para criar o outro absoluto, precisamos de aparatos ideológicos e de tecnologias de poder.

É assim que nasce o negro, o indígena, o favelado.

Você cria uma posição de diferença que parece irreconciliável com o outro.

Mas é preciso criar mais do que a diferença, diz Almeida: é preciso criar uma diferença que se traduza em comportamentos que ameacem seu modo de vida e que, ao ameaçar, a única alternativa que você tenha seja a de se defender.

Como isso é feito?

Criando formas de embarreirar a possibilidade desse outro chegar até você, impedindo que essa ameaça te alcance.

"Você precisa construir do ponto de vista imaginário e político o seu inimigo, ainda que ele more perto de você, atravessando uma ponte ou subindo um morro".

Essas são práticas coloniais, usadas até hoje, e elas são fundamentais para criar os movimentos que justificam a desigualdade e a violência sistemática.

Frantz Fanon, intelectual e psiquiatra, dizia que não é suficiente retirar o aparato político e jurídico para acabar com a colonização.

Seria necessário descolonizar as mentes das pessoas.

Se não se fazemos isso, a reprodução desse modelo continua, agora nas mãos dos que eram oprimidos.

Isso explica muita coisa - e explica largamente o Brasil.

Uma vida não tem significado. Nós é que damos a ela significado.

Esse significado é construído como política.

E em tempos de guerra, o valor de algumas vidas é relativizado.

É a realidade brasileira desde sempre.

Para atingir esse objetivo, a linguagem é uma ferramenta.

Silvio Almeida diz que os traficantes são, assim, chamados de narcoterroristas porque esse é o completamente outro: ele é o projeto de destruição da minha vida.

Se eu uso essa terminologia eu prevejo a possibilidade de tratar esse sujeito, essa ameaça, fora da lei.

Única forma de lidar com ele é com a sua eliminação ("Vou atirar na cabeça" disse Witzel. "Vou atirar para matar", disse Doria).

Isso é uma construção política.

Outra nomenclatura: guerra às drogas.

Por que "guerra"? Porque na guerra você pode eliminar seu inimigo.

As torturas aplicadas aos inimigos de guerra são as mesmas aplicadas contra jovens negros em batidas policiais, por exemplo.

A tortura passa a ser tecnologia e projeto político, forma de gestão e de controle.

Silvio ainda: Mais do que uma banalização da morte, temos um gozo com a morte.

E aqui vem o arremate final:

Tudo isso se consolida por meios de mecanismos chamados de democráticos.

"A pulsão de morte vai ser validada na figura de representantes eleitos por processos ditos democráticos.

"E esses governantes estarão apoiados por políticas econômicas que só podem funcionar com a produção sistemática da morte - isso é o neoliberalismo, senhoras e senhores", conclui o professor.

Políticas sistemáticas para calar qualquer tipo de crítica e assim poder implantar projetos autoritários do ponto de vista econômico.

Esse modelo foi testado no Chile de Pinochet, escola de Paulo Guedes e de tantos outros.

Trata-se da democratização do direito de matar: andar armado, atirar na pessoa que roubar meu celular. O direito de poder contaminar outra pessoa.

A liberdade vira a liberdade de ser egoísta, a liberdade de não ser solidário.

"Essa é uma economia que depende da gestão da morte para produzir resultados, e da destruição da natureza na mesma medida", diz Silvio Almeida.

Termino com o escritor Joel Rufino dos Santos: o pobre é uma classe perigosa dado que seus desejos desorganizam a sociedade.

Muito por causa disso, Bolsonaro e sua turma falem tanto na importância em manter a ordem.

"Paz sem voz não é paz, é medo" - O Rappa.