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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Anti-petismo, anti-bolsonarismo: delírios, alucinações, riscos e realidades

Lula em meio a multidão - Francisco Proner
Lula em meio a multidão Imagem: Francisco Proner

Colunista do UOL

23/10/2022 12h22

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Para escrever esse texto eu me baseei em três trabalhos de pesquisas acadêmicas.

O primeiro, um esforço absolutamente fascinante do professor João Cezar de Castro Rocha, titular de literatura da UERJ, que foi buscar em dois documentos históricos a base teórica para o Bolsonarismo e as reuniu no livro "Guerra Cultural e Retórica do Ódio".

O segundo, livro organizado por José Celso Cardoso Junior, Monique Florencio de Aguiar, Frederico Barbosa da Silva e Tatiana Lemos Sandim: "Assédio Institucional no Brasil: avanço do autoritarismo e da desconstrução do estado".

O terceiro, obra recente do pesquisador e cientista político Jorge Chaloub, "A Nova República em Crise", e especialista em estudos sobre a direita e a extrema-direita.

Ao final desse texto, com a ajuda dos professores e pesquisadores acima, teremos entendido como e por que o governo Bolsonaro faz do assédio um método de governo para destruir políticas públicas e acelerar a o fim da democracia.

Mas, mais importante, compreenderemos o que o anti-petismo representa, a quem ele serve e o que ele fará com o Brasil.

Vamos voltar esse filme para 1969, ano em que uma das leis de segurança nacional entrou em vigência, parte da doutrina de segurança nacional desenvolvida no contexto da guerra fria.

O contexto:

Na iminência do que se imaginou seria um apocalipse nuclear, criou-se uma doutrina para a proteção da integridade nacional.

Não apenas o Brasil: era parte do direito internacional à conservação das nações. Uma espécie de legítima defesa a nível nacional.

No Brasil, explica o professor João Cezar de Castro Rocha, a doutrina de segurança nacional foi aperfeiçoada e sistematizada na Escola Superior de Guerra, um centro de pensamento das forças armadas.

Foi ali que o conceito do inimigo externo foi adaptada para a figura do inimigo interno que, assim como o primeiro, ameaça a integridade da nação.

A partir desse ponto valem as lei de guerra: identificar o inimigo e eliminá-lo.

Essa doutrina ganhou corpo na ditadura com quatro leis de segurança nacional: 67, 69, 78 e 83.

A de 69, diz Castro Rocha, tem 107 artigos e a palavra morte aparece 32 vezes.

Trata-se, assim, de um culto à morte que chega a reinstalar a pena de morte para esse inimigo interno.

O professor explica que não há paralelo na jurisprudência internacional para o que está escrito nessa lei de 1969.

Em 15 artigos, prescreve-se a pena de morte como punição para crimes políticos. Era a pena máxima; a mínima era a prisão perpetua.

O conceito, vale reforçar, era o do inimigo interno: detectá-lo e eliminá-lo.

É nessa época que Bolsonaro e Mourão estão se construindo como militares nas Agulhas Negras.

É essa a cartilha deles.

Mas não só deles.

Assim que Sarney assume o governo, o primeiro do atual período de transição democrática, um projeto do exército começa a ser desenvolvido, liderado pelo ministro do exercito do Sarney.

Trata-se de um livro a que foi dado o nome de Orvil (a palavra quer dizer livro ao contrário. Mas ao contrário de quê?).

Do que exatamente estamos falando?

Estamos falando de uma resposta que as forças armadas se sentiram compelidas a dar a um livro chamado Brasil Nunca Mais.

O que é o Brasil Nunca Mais?

Em 1979, com o começo do fim do período da ditadura, os advogados dos presos políticos puderam finalmente ver os processos dos seus clientes e constataram as referências a torturas praticadas no interior das forças armadas, quando os presos estavam sob a tutela do estado.

São relatos de pessoas usadas como cobaias em aulas práticas de tortura dadas a jovens oficiais do exército.

Tudo está nos arquivos registrado.

São informações que constam dos autos dos processos, não estamos aqui falando de uma teoria da conspiração.

O professor Castro Rocha explica que é raro que os algozes digam que torturaram e como torturaram.

Mas, nesse caso, os advogados dos presos políticos tiveram acesso a seis mil páginas de documentos descrevendo as torturas aplicadas e reuniram tudo num livro chamado "Brasil Nunca Mais".

O livro, lançado primeiro na Europa, consagrou a imagem das forças armadas brasileiras associadas a violência, tortura e assassinato.

E explicitou o que foi a ditadura brasileira.

Por isso, na administração de José Sarney, conta o professor, os arquivos do Centro de Inteligência do Exército foram vasculhados para dar uma resposta a esse livro chamado "Brasil Nunca Mais".

Esse revisionismo em relação à ditadura forjou muitas personalidades da época.

Algumas delas são hoje nomes consagrados da imprensa, empresários de sucesso, uma certa elite financeira e oligárquica que rezava o terço contra o comunismo nos anos 60.

Outras são homens como Bolsonaro e de Mourão, que se formaram como paraquedista do exército nesse mesmo período.

O Orvil, livro que aterriza esses sentimentos, é projetado para virar de ponta cabeça o "Brasil Nunca Mais", o tratado que revelou ao mundo os horrores da ditadura.

Castro Rocha elucida: "Em lugar da denúncia dos crimes da ditadura, agora era a vez de mostrar como a esquerda armada atuou de forma criminosa. São 953 páginas que visam criminalizar a esquerda e, assim, justificar a tortura".

De fato, houve luta armada na esquerda.

Sob uma ditadura sanguinária, alguns resolvem pegar em armas.

Outros tantos, não pegaram. Aqui é importante não confundir a reação do oprimido com a violência do opressor.

Mas, João Cezar de Castro Rocha, que fez o favor de ler esse horror, diz que tem ali 40 páginas que explicam a mentalidade bolsonarista.

A matriz narrativa do Orvil é o que importa discutir. Então vamos a ela.

Em 1922 foi fundado o partido comunista do Brasil e, segundo o Orvil, desde então não se passou um único dia sequer sem o qual o movimento comunista internacional não tentasse tomar o poder no Brasil.

Está escrito. A paranoia formalizada em documento.

Daí porque era importante criar a figura do inimigo interno: para justificar a paranoia.

Quem era esse inimigo? O comunista que planeja tomar o poder. O pessoal da esquerda.

Anos depois: O PT.

É essa base teórica e paranoica que permite que João Dória seja chamado de comunista por querer vacinas; é uma atualização dessa matriz conspiratória.

Segundo o Orvil, a esquerda brasileira tentou por três vezes tomar o poder: em 35, com Prestes e a Intentona Comunista; com Vargas; e na luta armada entre 1967 e 1974 (Carlos Mariguella etc)

Nessas três tentativas, as forças armadas derrotaram a esquerda recorrendo a armas.

Mas houve uma quarta, segundo o Orvil. "E essa quarta explica a arquitetura da destruição do governo Bolsonaro", diz o professor da UERJ.

Para o Orvil, a quarta tentativa é a mais perigosa de todas. E ainda está em curso.

Diz o Orvil: em 74, a esquerda fez uma autocrítica e compreendeu que a tentativa de chegar ao poder através das armas nunca seria frutífera dada a desigualdade de forças. A esquerda decidiu largar as armas e pegar os livros - está no Orvil.

O que isso quer dizer?

Quer dizer que, em lugar de insistir na tentativa militar de tomada do poder para instaurar a ditadura do proletariado, a esquerda decidiu abraçar os livros e se infiltrar paulatina e progressivamente nas instituições da cultura, da imprensa, da educação e do entretenimento para conquistar corações e mentes para que, sem que pudéssemos nos dar conta, nos transformássemos em uma ditadura comunista.

Está aí desfraldada a base teórica para o discurso persecutório, adoentado e paranoico não apenas do Bolsonarismo, mas da criminalização do PT.

O Bolsonarismo atualiza essa noia. Traz a teoria da conspiração para os dias de hoje.

É esse princípio de delírios o que move Damares, Mourão, Bolsonaro, seus filhos e tantos outros que se entregam a uma cartilha de crenças fincada numa alucinação coletiva.

O livro fala sobre técnicas de infiltração da esquerda em todas as esferas da sociedade e do estado.

Trata-se, segundo os autores, de conspiração internacional para solapar as bases da civilização ocidental, abolir da família cristã e, dessa forma permitir que o comunismo chegue ao poder, explica Castro Rocha.

Para evitar, é preciso recorrer à doutrina de segurança nacional cujo meio é: identificar o inimigo, e o método é eliminar imediatamente esse inimigo.

Para Bolsonaro e parte da sociedade, de 1922 até hoje, portanto, o movimento comunista internacional procura assumir o poder no Brasil para impor sua agenda de destruição dos valores da família tradicional.

Quem é o inimigo que deve ser eliminado hoje?

Qualquer um que esteja dentro das estruturas de entretenimento, cultura, educação.

Está no livro que dominar essas organizações e instituições é o plano dos comunistas.

Quem mais é o inimigo? Basta olhar o noticiário:

Qualquer um que vista vermelho. Gays. Trans. A sapatão. A feminista. O petista. A abortista.

Se o anti-petismo se sustentasse em razão e em fatos, ele seria do justo tamanho do anti-psdbismo, afinal a administração de FHC teve sua vasta e indecente dose de escândalos de corrupção: compra de votos para se reeleger e o esquema conhecido como "Privataria tucana" são dois dos maiores, nunca devidamente investigados, mas amplamente conhecidos ainda que a imprensa não tenha feito quase nada para divulgá-los.

Mas voltando ao fio de ideias.

No bolsonarismo, tudo o que for identificado como inimigo precisa ser destruído em nome da salvação da civilização ocidental e da família tradicional.

Se ainda não dá para eliminar fisicamente, afinal estamos num fiapo de democracia, elimina-se simbolicamente através de linchamentos, destruição moral, assédios, abusos.

Mas o plano de Bolsonaro e de sua turma é vencer um segundo mandato nas urnas - mesmo que para isso burlem todas as regras e leis - e então, aí sim, destruir a democracia e instalar alguma coisa que ainda não sabemos o que será, mas que sabemos exatamente como atuará: identificando e eliminando seus inimigos.

E também as instituições: afinal, é preciso destruir sistematicamente todas elas já que há muitos inimigos nelas: nos aparatos de cultura, de educação e de entretenimento.

É, portanto, o fim de qualquer aparato de solidariedade social: SUS, Bolsa Família e suas atualizações, aposentadoria, seguro-desemprego, férias, décimo terceiro, órgãos fiscalizadores, agências reguladoras etc.

É aqui que a paranoia anti-petista dá as mãos ao neoliberalismo, à ideologia do empreendedorismo: cada um por si, Deus contra todos.

Quem for bom, triunfará. Quem fracassar, não terá se esforçado o suficiente, ou não terá contribuído com o dízimo da forma correta.

Paulo Guedes e Edir Macedo numa transa macabra parindo o fim do mundo.

Olavo de Carvalho foi quem ofereceu um sistema de crenças para a atualização desse sistema e, com ele, uma linguagem e um estado de espírito que amparam e justificam a luta pela salvação dos valores tradicionais da família e da sociedade brasileira.

Desde que Bolsonaro assumiu, ele tem praticado com excelência seu manual para derrotar o inimigo interno. Essa é a dinâmica do governo.

Como ainda não se pode fazer o que a ditadura fez, que é sair pegando e matando os identificados inimigos, o governo Bolsonaro faz uso da sistematização de assédios como forma de eliminar inimigos.

Alguns exemplos para que a gente saia do abstrato, e aqui volto a recomendar o livro "Assédio Institucional no Brasil: avanço do autoritarismo e da desconstrução do estado", que tem muitos outros casos concretos.

2 de agosto 2019: a pedido de Bolsonaro, Ricardo Galvão é exonerado do INPE por revelar que o desmatamento na Amazônia estava aumentando. Galvão é um cientista internacionalmente conhecido e ganhou nesse mesmo ano prêmio da revista de ciência Nature como cientista do ano

Pouco antes disso, Bolsonaro mandou transferir o fiscal do IBAMA que o multou enquanto ele pescava ilegalmente numa área proibida no Rio.

Outubro 2021: Sergio Camargo, da Fundação Zumbi dos Palmares, foi acusado de assédio moral pelos funcionários da fundação. Ele havia negado a existência do racismo no Brasil, chegou a emitir um selo antirracista, tirou da biblioteca da fundação livros que considerava de esquerda, tirou honrarias concedidas a pessoas negras como Marinho da Vila.

No mesmo ano, Mario Frias foi acusado de assédio moral pelos funcionários da secretaria que comandava por gritar com eles e andar com uma arma visível dentro da secretaria.

Junho de 2022: Pedro Guimarães, presidente da Caixa, é acusado de inúmeros assédios, entre sexuais e morais.

19 de julho de 2022, o diretor de controle interno e integridade da Caixa, ou seja da ouvidoria da Caixa, aquele que deveria por tramitar ou arquivar denuncias de assedio, sofrendo pressão, se suicidou no prédio da Caixa.

Setembro de 2022, uma empresaria do agro fez um vídeo conclamando seus colegas a demitir qualquer funcionários que fosse votar em Lula.

Desde então, as denúncias de assédio eleitoral aumentaram muito. São mais de 700. Todas, menos uma, pelo voto em Jair Bolsonaro.

14 de setembro: jornalista da afiliada da Record do Paraná é demitida porque fez uma externa usando camisa vermelha.

Há centenas outros casos e acusações de assédio associadas à gestão de Jair Bolsonaro.

Assédio é perseguição. É conduta que cause constrangimento psicológico. É arma para eliminar o inimigo.

Bolsonaro não inventou o assédio, claro. O assédio é uma relação de poder impositivo que existe há muito tempo.

Bolsonaro apenas transformou o assédio em modo de gestão e alargou seu escopo.

Assédio jurídico: O escritor João Paulo Cuenca parodiou no Twitter uma frase do século 18 associando-a a pastores e foi processado centenas de vezes por pastores ligados ao bolsonarismo.

Luciano Hang atua da mesma forma: move dezenas de processos contra seus críticos sem pestanejar.

Tem também o assédio ideológico, como a proposta para que novos livros didáticos fossem escritos para rever 1964.

Outra forma: o primeiro escândalo do MEC na gestão Bolsonaro foi aquele que revelou que o governo deixou de distribuir 11 milhões de livros comprados na gestão anterior, já pagos.

Isso porque muitos funcionários foram desligados por serem suspeitos de votar ou gostar do PT, não foram repostos e, assim, não havia como distribuir os livros.

O assédio bolsonarista é gerencial e se baseia na des-petização a fim de praticar um amplo desmonte das instituições do estado.

É um projeto de governo e de sociedade que precisa que o estado não funcione.

Amparado pela alucinação neoliberal do "menos estado", ele segue seu destino convencendo a classe média a ir às ruas apoiar políticas que a destruirão.

É essa destruição que mais de 40 milhões de pessoas estão dispostas a reeleger sob a alegação de que Bolsonaro e sua turma atuam bravamente na luta contra a instalação de uma ditadura comunista representada pelo PT que visa acabar com a família tradicional brasileira e com a civilização ocidental.

Variações desse delírio estão na mídia e podem ser vistas na forma da falsa simetria.

Outro dia mesmo vi uma colunista comparando a frase "vamos metralhar a petralhada", dita por Bolsonaro, com a regulação da mídia que Lula diz querer fazer (Para quem se interessar em saber mais sobre o projeto de regulação da mídia de Lula esse texto aqui é muito informativo)

Votar pelo fim da democracia em nome de uma paranoia delirante que vai destruir tudo o que não for espelho dos Bolsonaro é, além de perverso, extremamente suicida: você ou alguns dos que você ama, amanhã, serão identificados como inimigos e, quando isso acontecer, não haverá mais o que possamos fazer.