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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O Brasil precisa de um projeto de passado

Ditadura Militar no Brasil foi de 1964 a 1985 - Kaoru/CPDoc
Ditadura Militar no Brasil foi de 1964 a 1985 Imagem: Kaoru/CPDoc

Colunista do UOL

06/11/2022 12h09

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A eleição de uma frente ampla democrática como nunca antes vimos nesse país abre espaço para que, pela primeira vez em mais de 500 anos, possamos olhar para a nossa história e começar a contar o que realmente aconteceu para que chegássemos até aqui.

Insisto na ideia de que é hora de interromper a narrativa da pacificação. Não é hora de falar em pacificação.

Nesse ponto de nossas vidas, lutar pela pacificação é lutar para manter vivo o horror que nos moldou enquanto sociedade.

Esqueçam pacificação e esqueçam quem fala em pacificação.

Temos que falar de projeto de passado.

Contar nossa história sob o ponto de vista das populações sequestradas em África e trazidas para cá para serem escravizadas e produzir a riqueza que fez a Europa ser o que ela é hoje e formou uma oligarquia que ainda berra enfurecida todas as vezes que entende estar perdendo seus privilégios.

Contar a história da grande invasão de terra que foi o que se chama "descobrimento". Invasão seguida de ocupação e de extermínio.

Construir museus da escravidão, assim como há museus do Holocausto e do Apartheid. Um museu central e grande, cuja visitação faça parte da formação escolar.

Falar do colonialismo como um sistema de saques e sequestros e associá-lo ao que se chama "sucesso do capitalismo". Sem todos os genocídios e saques do colonialismo não haveria capitalismo.

Ao fazer isso colocamos em contexto quem diz "mas o comunismo matou muita gente".

A partir de uma educação verdadeira o debate sobre cotas ganha novo contexto.

Não haverá como argumentar se as cotas raciais são ou não justas porque ficará evidente que elas são o caminho para a reparação.

Olhar para o terrorismo de estado cometido durante a ditadura.

Construir um espaço de memória para dar nome ao que vivemos nos últimos seis anos.

Um projeto para celebrar os que morreram durante a pandemia, os que morrem nas chacinas policiais cometidas nas favelas e periferias.

Um projeto de passado que dê nome aos que participaram dos crimes cometidos durante a pandemia.

Para punir os que ainda torturam e torturaram - mesmo aqueles que já morreram.

Um espaço de memória que nos permita prender de imediato se um outro deputado fizer juras de amor a um torturador e à tortura.

E não apenas deputados: qualquer apologia à ditadura deve ser punida de forma exemplar.

Um projeto de passado que impeça o surgimento de um novo Bolsonaro.

Um projeto de passado que arranque das estradas e das ruas todo nome de ditador e que coloque abaixo os monumentos que fazem homenagem aos bandeirantes.

Fogo nos racistas, sim. De forma simbólica e perpétua.

Aqui convido o grupo Inquérito e a composição "Eu só peço a Deus para se juntar ao debate:

"Tira os pobre do centro, faz um cartão postal

É o governo trampando, Photoshop social

Bandeirantes, Anhanguera, Raposo, Castelo

São heróis ou algoz? Vai ver o que eles fizeram

Botar o nome desses cara nas estrada é cruel

É o mesmo que Rodovia Hitler em Israel"

Olhar nossa história violenta, olhar as bases racistas que nos fundam e até hoje nos organizam, des-inverter o roteiro oficial contado até aqui. A fundação desse país tem como certidão de nascimento a invasão de terras e o extermínio.

A partir dessa consciência como é aceitável falar que é o MST que invade?

Um projeto de passado que nos permita compreender a violenta história da formação de nossas polícias e por que elas não nos servem mais. Hora de refundá-las a partir da base.

Hora, na verdade, de refundar essa nação.

Sem esse projeto de resgate do nosso passado não pode haver futuro.

Sem um projeto de passado não podemos, em nome de um mínimo de honestidade intelectual, falar em pacificação.

Termino convidando vocês a colocar para tocar o samba-enredo da Mangueira em 2019: "História Pra Ninar Gente Grande", uma aula magna de Brasil.

Aqui a letra:

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês