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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O problema não é ir comer carne com ouro; o problema é esse lugar existir

O chef-celebridade Salt Bae, dono da churrascaria favorita dos famosos por seus bifes folheados a ouro, a Nusr-Et Steakhouse - Reprodução/Instagram
O chef-celebridade Salt Bae, dono da churrascaria favorita dos famosos por seus bifes folheados a ouro, a Nusr-Et Steakhouse Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

05/12/2022 09h38

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O episódio da carne com ouro ingerida (e, espero, digerida) por alguns jogadores no Qatar talvez esteja causando indignação pelo motivo errado.

Se as imagens mostrassem Elon Musk em ato exibicionista com esse coeficiente de cafonice será que o barulho seria tão grande?

Certamente não é de bom tom, no meio de uma competição como essa, disputada num dos países mais violentos do mundo, ir farrear comendo carne no valor de mil reais a mordida.

Mas e se os envolvidos fossem homens brancos e poderosos? Como reagiríamos? Acho que o convite à reflexão é pertinente.

Digo isso porque o problema não é exatamente o gesto cafona da ostentação. O problema deveria ser que existam no mundo lugares assim.

Lugares como a monarquia absolutista do Qatar, sociedades masculinizadas onde o exibicionismo masturbatório entre homens é moeda de troca, onde um jantar custa o que algumas famílias não ganham em um ano de trabalho.

Nossa fúria deveria estar voltada ao sistema e não necessariamente às pessoas.

Ou, se formos pegar as pessoas, que comecemos pela crítica ao modo exibicionista de vida de homens como Musk, Bezos, Dória e Justos para citar alguns dos nossos.

Vini Jr, por exemplo, era um dos que estavam no desbunde.

A fama e a riqueza de Vini Jr. são coisas recentes.

Não faz muito tempo ele era apenas mais um jovem negro periférico com poucas chances na vida. Para que um Vini Jr. prevaleça centenas de milhares de outros ficaram pelo caminho.

Alçado à categoria de um dos melhores atletas do mundo, está entregue ao que esse mundo diz que é a medida do sucesso, sob a tutela de um de seus ídolos que, pelo que li, foi quem levou a turma nesse restaurante que serve pó de ouro.

O sistema econômico que organiza assim a sociedade quase sempre passa ao largo das críticas.

Mas tudo a respeito da ditadura do Qatar fala sobre os horrores do capitalismo: as mortes para a construção dos estádios, a exploração trabalhista de milhões de imigrantes, o desrespeito a causas que envolvem mulheres e pessoas LGBTQs, as periferias escondidas que abrigam trabalhadores em situação precária de vida...

Só por ser capitalista essa monarquia absolutista é aceita por todos. Ou estaríamos felizes com uma Copa disputada na Coreia do Norte?

A Rússia está banida, mas os Estados Unidos estavam lá até ontem. Qual a lógica?

"Ah, a Rússia invadiu a Ucrânia". E os Estados Unidos invadiram Iraque e Afeganistão sob o pretexto de levar a democracia para essas nações.

Por que não invadiram o Qatar e a Arábia Saudita então? O que estão esperando?

O Iraque virou uma democracia plena ou é hoje terra devastada?

E a campanha terrorista de drones dos Estados Unidos sobre o Oriente Médio que já causou a morte de milhares de inocentes? Por que não se fala disso?

A crítica ao capitalismo não pode ser ilegítima.

Não é aceitável que estejamos disputando uma Copa do Mundo dentro de uma ditadura e que esse tema não esteja sendo fartamente debatido nos programas esportivos, nas entradas dos repórteres, nos jornais, em todos os lugares.

A festa da carne com ouro é um reflexo desse sistema econômico que naturaliza a compra de times de futebol por bilionários. Salve, Ronaldo.

O Qatar é dono do PSG, por exemplo.

Ou seja, Neymar, Messi e Mbappé estão jogando para aqueles que pagam seus salários. Quanto conflito de interesse existe nessa relação? Isso é puro suco de capitalismo: tudo passa a ser digerível se o dinheiro envolvido for o bastante.

É admissível que exista um restaurante como esse da carne com ouro num mundo onde 200 milhões de pessoas estão passando fome nesse mesmo instante?

A ficção da meritocracia é a história contada para fazer a gente sossegar na crítica: se você se esforçar, amanhã você poderá estar mastigando carne com ouro cercado de luzes piscantes, serviçais e bajuladores. Basta trabalhar muito.

Ronaldo foi justificar a ida ao restaurante e piorou tudo ao reforçar a mentira da meritocracia: ele disse a um podcast famoso que levou a turma para comer ouro para inspirar jovens a buscar a mesma coisa para eles.

Esse discurso é violento, inverídico e perverso.

Ele beneficia apenas aqueles que estão no poder e oprime milhões de trabalhadores que se entregam a jornadas de trabalho insanas em nome de um sonho que jamais se realizará.

A vida não funciona assim e uma reflexão de segundos vai fazer você perceber que as pessoas mais esforçadas que você conhece não são ricas, muito pelo contrário. Mas algumas das mais preguiçosas são sim muito ricas.

Como explicam muitos pesquisadores, até liberais como Yuval Harari, a fome hoje é uma decisão política.

Existem recursos tecnológicos e existe produção de alimentos suficiente para fornecer a toda população mundial uma vida minimamente decente.

Como é possível que aceitemos viver dentro de um regime que prefere jogar comida fora em nome do lucro do que alimentar quem tem fome?

A indignação é bem-vinda, mas precisamos direcioná-la para o lugar certo ou acabaremos apenas nos matando uns aos outros enquanto uma pequena elite seguirá cagando ouro.

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