Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Éder Militão, Karol Lima e a fulanização dos debates
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Sociedades como a nossa percebem mulheres em duas chaves: ou somos santas, ou somos putas. Não há outro lugar de compreensão para o que estamos fazendo na vida.
Mães são automaticamente colocadas na ordem das santas. A mulher na balada que beija muito é a puta.
Karol Lima foi à tal da farofa de GKay, que eu francamente mal sei do que se trata, e aparentemente está sendo julgada por ter beijado muito.
Karol é mãe da filha de Éder Militão, o zagueiro da seleção.
Tiveram um relacionamento, engravidaram, se separaram, ele encrencou com os valores da pensão para a filha, disse que trabalhava numa profissão muito instável, que não podia se comprometer com tanto, entrou com ações, chiou, esperneou e finalmente concordou com um valor que não sabemos qual é.
Militão era um dos que estavam com Ronaldo na farra da carne com ouro dias atrás e foi julgado não apenas por estar comendo ouro, mas também pelo relógio que tinha no pulso.
Diante do comportamento de Karol na balada, pedidos para que Militão não pague a pensão já aparecem por aí. Onde já se viu a mulher querer pensão para a filha e ir para a balada?
Um pai que se diverte na balada nunca é perguntado sobre "com quem estão seus filhos agora para você estar aqui?", mas uma mãe é constantemente assediada com essa indagação. Como você ousa estar se acabando de beijar e de dançar? Com quem está a criança?
Maternidade, afinal, exige sacrifícios. Uma santa faria isso. Esqueça sua vida pessoal, você praticamente nem existe mais, agora trata-se da criança. Não tem balada, não tem beijo, não tem prazer pessoal é o recado.
Uma criança, qualquer criança, é responsabilidade de quem a gerou. E para gerar um ser humano precisamos de duas pessoas: uma mulher e um homem. Para todos nós há, portanto, uma mãe e um pai de saída.
Mas por onde andam os pais?
No Brasil, mais de 12 milhões de mulheres são mães-solo. Mães-solo trabalhadoras periféricas mesmo se quiserem e encontrarem disposição não terão muito como ir para a balada.
Até pouco tempo falávamos em " mães solteiras", mas uma hora percebemos que o estado civil pouco importa para dar conta da real dimensão do problema.
Os pais ou escaparam, ou negaram a paternidade, ou simplesmente acreditam que ser pai é aparecer de vez em quando.
Esse número, portanto, é muito maior se contabilizarmos esses pais que dão as caras quando bem entendem, que acham que ser pai é levar ao parque uma vez ao mês e postar foto nas redes sociais, que não pagam pensão e que deixam as crianças sob a integral responsabilidade da mãe.
Karol pode ir para a balada tanto quanto Miitão.
Pode ser puta e santa numa mesma noite.
Pode transar com quem quiser e na sequência amamentar. Pode rebolar e, chegando em casa, acarinhar a filha. Pode inclusive ser qualquer coisa entre a santa e a puta.
A domesticação dos corpos que nossa sociedade impõe às mulheres é parte desse jogo capitalista que não deixa que a gente perceba o trabalho envolvido em cuidar de uma criança e chama esse trabalho de amor de mãe.
Amor não tem nada a ver com as tarefas exigidas para socializar uma pessoa.
Seria preciso que encarássemos como trabalho o que é trabalho, que todos fossem responsáveis pela criança, que o Estado se envolvesse providenciando creches gratuitas e que houvesse remuneração para aquelas e aqueles que ficam em casa cuidando do lar e da reprodução da força de trabalho —porque é disso que estamos falando.
Um ditado africano diz que é preciso um vilarejo para cuidar de uma criança. Qualquer pessoa que tem filho sabe disso.
Quando colocarmos em prática essas verdades, o corpo da mulher deixará de ser domesticável.
É fácil criticar o Qatar por não respeitar os direitos da mulher, difícil é olhar para o Brasil e entender que estamos longe de um ambiente justo aqui também.
Nessa hora, Karol e todas as mães poderão ir para a balada beijar quem bem entenderem sem que julgamentos morais caiam sobre sua cabeça e sobre seu corpo.
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