Topo

Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Éder Militão, Karol Lima e a fulanização dos debates

Karoline Lima e Éder Militão: de namoro a gravidez e processo - Reprodução/Instagram
Karoline Lima e Éder Militão: de namoro a gravidez e processo Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

06/12/2022 12h21Atualizada em 06/12/2022 12h39

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Sociedades como a nossa percebem mulheres em duas chaves: ou somos santas, ou somos putas. Não há outro lugar de compreensão para o que estamos fazendo na vida.

Mães são automaticamente colocadas na ordem das santas. A mulher na balada que beija muito é a puta.

Karol Lima foi à tal da farofa de GKay, que eu francamente mal sei do que se trata, e aparentemente está sendo julgada por ter beijado muito.

Karol é mãe da filha de Éder Militão, o zagueiro da seleção.

Tiveram um relacionamento, engravidaram, se separaram, ele encrencou com os valores da pensão para a filha, disse que trabalhava numa profissão muito instável, que não podia se comprometer com tanto, entrou com ações, chiou, esperneou e finalmente concordou com um valor que não sabemos qual é.

Militão era um dos que estavam com Ronaldo na farra da carne com ouro dias atrás e foi julgado não apenas por estar comendo ouro, mas também pelo relógio que tinha no pulso.

Diante do comportamento de Karol na balada, pedidos para que Militão não pague a pensão já aparecem por aí. Onde já se viu a mulher querer pensão para a filha e ir para a balada?

Um pai que se diverte na balada nunca é perguntado sobre "com quem estão seus filhos agora para você estar aqui?", mas uma mãe é constantemente assediada com essa indagação. Como você ousa estar se acabando de beijar e de dançar? Com quem está a criança?

Maternidade, afinal, exige sacrifícios. Uma santa faria isso. Esqueça sua vida pessoal, você praticamente nem existe mais, agora trata-se da criança. Não tem balada, não tem beijo, não tem prazer pessoal é o recado.

Uma criança, qualquer criança, é responsabilidade de quem a gerou. E para gerar um ser humano precisamos de duas pessoas: uma mulher e um homem. Para todos nós há, portanto, uma mãe e um pai de saída.

Mas por onde andam os pais?

No Brasil, mais de 12 milhões de mulheres são mães-solo. Mães-solo trabalhadoras periféricas mesmo se quiserem e encontrarem disposição não terão muito como ir para a balada.

Até pouco tempo falávamos em " mães solteiras", mas uma hora percebemos que o estado civil pouco importa para dar conta da real dimensão do problema.

Os pais ou escaparam, ou negaram a paternidade, ou simplesmente acreditam que ser pai é aparecer de vez em quando.

Esse número, portanto, é muito maior se contabilizarmos esses pais que dão as caras quando bem entendem, que acham que ser pai é levar ao parque uma vez ao mês e postar foto nas redes sociais, que não pagam pensão e que deixam as crianças sob a integral responsabilidade da mãe.

Karol pode ir para a balada tanto quanto Miitão.

Pode ser puta e santa numa mesma noite.

Pode transar com quem quiser e na sequência amamentar. Pode rebolar e, chegando em casa, acarinhar a filha. Pode inclusive ser qualquer coisa entre a santa e a puta.

A domesticação dos corpos que nossa sociedade impõe às mulheres é parte desse jogo capitalista que não deixa que a gente perceba o trabalho envolvido em cuidar de uma criança e chama esse trabalho de amor de mãe.

Amor não tem nada a ver com as tarefas exigidas para socializar uma pessoa.

Seria preciso que encarássemos como trabalho o que é trabalho, que todos fossem responsáveis pela criança, que o Estado se envolvesse providenciando creches gratuitas e que houvesse remuneração para aquelas e aqueles que ficam em casa cuidando do lar e da reprodução da força de trabalho —porque é disso que estamos falando.

Um ditado africano diz que é preciso um vilarejo para cuidar de uma criança. Qualquer pessoa que tem filho sabe disso.

Quando colocarmos em prática essas verdades, o corpo da mulher deixará de ser domesticável.

É fácil criticar o Qatar por não respeitar os direitos da mulher, difícil é olhar para o Brasil e entender que estamos longe de um ambiente justo aqui também.

Nessa hora, Karol e todas as mães poderão ir para a balada beijar quem bem entenderem sem que julgamentos morais caiam sobre sua cabeça e sobre seu corpo.