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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Chuva não destrói; o que destrói é poder público

Enxurrada atinge moradias em área de encosta no bairro Topolândia, em São Sebastião (SP) - Daniela Andrade/PMSS
Enxurrada atinge moradias em área de encosta no bairro Topolândia, em São Sebastião (SP) Imagem: Daniela Andrade/PMSS

Colunista do UOL

19/02/2023 17h59

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Talvez fizéssemos bem em aposentar a manchete "chuva destrói".

Chuva não destrói. Chuva é vida, é natural, é respiro, é crescimento, é florescimento, é oxigênio.

Chove nesse planeta desde o dia um, há bilhões de anos.

O que destroi é o poder público, interesse privado, especulação imobiliária, descaso, desigualdade social, progresso.

Passar a manchetar com "Poder público destrói litoral de São Paulo" ajudaria a espalhar a verdade com a mesma rapidez com que a chuva espalha vida.

"Governo do estado (do município, da federação) destrói cidades litorâneas e deixa milhares sem casa" seria uma manchete coerente.

Colocar o foco em quem causou e em quem tem a obrigação de resolver.

Em 2022, o governo de Jair Bolsonaro assistiu de Brasília o país registrar o maior número de mortes depois de fortes chuvas em uma década.

O que fez então o governo diante do dado trágico? Sugeriu um corte de até 99% nos recursos voltados para obras emergenciais e redução de desastres naturais.

Tudo em nome do sagrado corte de gastos.

Pode torrar o cartão corporativo, não precisa baixar taxa de juros, nem cobrar imposto sobre lucro e dividendo, muito menos pensar em colocar IPVA em barcos, aviões, helicópteros. O que importa é cortar do social.

Os que pregam fanaticamente a austeridade são, como ensina o professor Vladimir Safatle, os menos austeros.

Nas palavras do economista Ladislau Dowbor: "Drenaram as políticas públicas (saúde, educação, infraestruturas), a capacidade de compra das famílias (juros sobre pessoa física) e a capacidade de investimento das empresas (juros sobre pessoa jurídica). Os proveitos vão todos para o mesmo endereço, os bancos e outras corporações financeiras, a chamada Faria Lima"

    Seria preciso também contextualizar como a emergência climática está aumentando a força das chuvas e como quem está super-aquecendo o planeta é um sistema econômico que explora, devasta, queima, desmata, asfalta, cimenta, aterra, corta.

    Há estudos e estudos alertando para os perigos do acelerado aquecimento na temperatura do planeta.

    Ligar esses pontos é a única forma de entender o que está acontecendo.

    Porque essa é outra realidade: já está acontecendo.

    Já estamos vivendo os impactos, sentindo na pele as tragédias causadas pelo poder público neoliberal que privilegia interesses do capital privado.

    Seria hora de escutar a ciência que envolve os milhares de alertas sobre o que esse interesse poderoso e narcísico fará com o planeta.

    A pequena classe de pessoas que destroi o equilíbrio na Terra se prepara para colonizar Marte porque sabe perfeitamente que, se não parar de agir como age, nossas chances aqui são diminutas

    Tudo isso precisaria ser explicado diariamente.

    Necessitamos da chuva para existir. Sem chuva, não temos saída.

    Do que não precisamos é de poder público negligente que atende a interesses especulatórios a favor de duas dúzias de pessoas e em detrimento de milhões de outras.