Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O sistema que cala Titi Muller é o mesmo que cala a todas nós
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Veio à tona nesse 23 de fevereiro através do programa Estudio I, com Andreia Sadi na Globonews, o caso que envolve a apresentadora Titi Muller e seu ex-marido, o músico Tomás Bertoni.
A matéria feita pela Globonews nasceu de uma corajosa entrevista que Titi Muller deu ao vídeo-cast "Desculpa Qualquer Coisa", da minha amiga Tati Bernardi e de Universa, no dia 20 de fevereiro.
Bertoni é acusado de violência física e psicológica contra Titi, com quem tem um filho de dois anos.
Segundo a matéria, do processo que corre em segredo de justiça consta a confissão de Bertoni a respeito das violências praticadas.
Estamos, portanto, falando de um caso de violência de gênero.
Um caso cheio de requintes de crueldade porque Titi está proibida juridicamente de se manifestar a respeito do ex-marido e da família do ex-marido.
Nesse ponto vale dizer que o ex-marido é filho de um ministro da administração Michel Temer: Torquato Jardim foi ministro da justiça de Temer.
A matéria, um furo de reportagem do programa comandado por Sadi, focou a abordagem no filho do casal e na importância de se encontrar um ambiente saudável para que a criança cresça.
Os comentários foram feitos nesse sentido depois que a importante pauta foi ao ar.
É um modo de dar a notícia e de comentá-la.
Mas eu gostaria de focar em outro aspecto já que estamos falando de um caso que envolveria violência física.
O foco é a mulher e a mãe.
Uma mulher e mãe submetida a desdobramentos de violências que, segundo a reportagem, seriam confessas.
Como é possível buscar um ambiente seguro para qualquer criança quando a mãe é submetida a tanta violência que precisa pedir medidas cautelares contra a aproximação do ex-marido?
Com que tipo de medo vive uma mulher nessas condições?
Com que tipo de opressões vive uma mãe que precisa ir chorar no banheiro para que o filho não a veja dilacerada?
Com que tipo de tristezas vivem as mulheres que veem amigos se afastarem quando elas se esfarrapam por causa de histórias de violência de gênero?
Com que tipo de dignidade vivem as mães que precisam escutar ex-maridos a chamarem de louca, de lixo, de vagabunda na frente das crianças?
Quando você ataca uma mãe, você derruba a criança em seu colo.
Sempre. Todas as vezes.
Mesmo se você disser mil vezes que está muito preocupado com o bem-estar da criança.
Na matéria do Estádio I, o advogado de defesa do acusado contou, com um riso torto nos lábios, que já havia sido solicitado um teste psicológico para avaliar Titi Muller.
Esse é um recurso institucionalizado que faz parte dos pormenores da violência processual.
Louca, maluca, descompensada é a mulher que acusa.
Especialmente se o acusado for um homem branco e poderoso.
O mesmo advogado disse que Titi é agressiva ao se comunicar com a família do ex-marido e por isso tiveram que entrar com medida para que ela se calasse.
Trata-se de recurso usual em casos de violência de gênero: a mulher que apanha e que é psicologicamente abusada é aquela acusada de ser agressiva quando ousa reagir furiosamente aos ataques.
Em suas redes sociais, Titi postou um comunicado que conta que ela foi agredida fisicamente quando estava grávida.
A partir desse ponto - e a matéria da Globonews teve acesso ao documento em que o acusado confessa as agressões - não há como falar de outra coisa.
Uma mulher teria sido fisicamente agredida quando estava grávida.
Pausa para escutarmos o estrondoso silêncio da sociedade que santifica mulheres grávidas mas não a ponto de se importar que elas sejam agredidas.
Sei que todo o curso dessa história aponta para o bem-estar da criança, mas gostaria de reforçar que o bem estar da mulher deveria ser colocado como abre alas.
Uma criança precisa de uma mãe forte e saudável. Isso é bastante coisa para que qualquer criança cresça de forma digna.
Focar na mãe e em seus direitos.
Usar as palavras corretas, chamar as coisas pelos seus nomes.
Não considerar nem por um segundo que a mulher está maluca.
Levantar os dados de quantas mulheres são agredidas e mortas todos os dias por seus maridos, namorados, ex maridos, peguetes, flertes etc.
Aqui vão eles: a cada hora, 26 mulheres são agredidas no Brasil. A cada dia, três são assassinadas. Por homens que fazem parte de suas vidas.
E esses são números altamente subnotificados.
Estima-se que sejam pelo menos cinco vezes maiores do que isso.
Antes de denunciar toda mulher precisa de uma ampla rede de apoio porque as instituições farão de tudo para que os casos não sejam levados adiante.
Idas a delegacias, contar a história dezenas de vezes para dezenas de oficiais diferentes, exames e mais exames, colocar dúvidas a respeito de sua sanidade, sugerir que a mulher é uma pervertida, que provocou, que não sabe o que diz.
Tudo isso será feito pelo sistema antes que haja um processo e uma condenação.
É possível que falemos em justiça mesmo se o agressor for condenado?
O sistema não existe para nos proteger.
Pelo contrário.
Ele opera dentro da lei para nos manter domesticadas, submissas, passivas, silenciadas.
Titi, uma das apresentadoras mais originais e criativas da TV brasileira, teve a coragem de denunciar.
Ela vai seguir agora por essa via diabólica do caminho processual que tende a virar o rosto para as mulheres e proteger a integridade moral dos homens.
Com a palavra a advogada e doutora em direito Soraia da Rosa Mendes para explicar o que é o lawfare de gênero, ou como o Direito sempre foi um instrumento de guerra contra as mulheres usando a culpabilização da vítima e argumentos morais como forma de desqualificação repetida em processos: um cotidiano histórico de perseguição às mulheres.
"Infindáveis e sucessivas - ou frívolas - demandas judiciais e administrativas como forma de ameaça, retaliação e controle, são alguns dos exemplos de (ab)usos do direito cujo fim é enfraquecer, diminuir, submeter, empobrecer e violentar mulheres.
"Mulheres são alvo quando denunciam a violência que acontece dentro de casa.
"Assim como também são alvo quando vêm à público denunciar outras formas de violência ocorridas fora do âmbito doméstico.
"Ou alguém tem dúvida de que as rápidas e difundidas via imprensa ameaças de processos criminais por 'denunciação caluniosa' vindas de figuras públicas apontadas em investigações por crimes de assédio ou estupro não configuram um 'Cale-se!'?"
Essas são formas de violência processual que precisam, para Mendes, serem compreendidas e denunciadas como parte da violência de gênero estrutural.
É violência por cima de violência por cima de violência contra nossos corpos, dignidade, moral e existências.
Uma hora isso tem que mudar.
A coragem de mulheres como Titi é um tijolo largo e forte na construção dessa parede contra as violências diárias às quais somos submetidas.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.