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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mas afinal: o que querem as mulheres?

Feministas fazem manifestação no Dia Internacional da Mulher, em Santiago, no Chile - Getty Images
Feministas fazem manifestação no Dia Internacional da Mulher, em Santiago, no Chile Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

08/03/2023 08h15

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Hoje é aquele dia do ano em que a mulher está no centro das atenções.

O 8M, como ficou conhecido o oito de março que celebra a luta feminista no mundo inteiro, é uma data que convida a refletirmos sobre aquela pergunta freudiana que ecoa sem resposta: mas, afinal, o que querem as mulheres?

Existe a resposta curta e a longa.

Vamos à curta: queremos sobreviver.

Com dignidade e autonomia sobre nossos corpos.

A resposta longa precisa de elaboração.

O machismo é um sistema de poder.

O que isso quer dizer?

Quer dizer que ele existe na base de cada articulação social: nas relações humanas, nas instituições, no estado, nas corporações.

Isso significa dizer que todos os homens se beneficiam do machismo, mesmo os mais legais.

E que todas as mulheres são por ele oprimidas, mesmo as que menos acreditam que ele exista.

Quando um bebê nasce e o médico ou a médica dizem "é menina" está aí traçado seu destino: senta com as perninhas fechadas, fala baixo, não se exponha, não use essas roupas provocativas, não saia sozinha, não dê para qualquer um, não ria alto, limite-se ao seu espaço, encolha-se no transporte público, use essas roupas aqui porque são chiques ainda que limitem todos os seus movimentos: saltos, saias justas, blusas apertadas. Cuide-se, seja magra, arrume um marido.

Os recados vão sendo dados em casa, na escola, no clube, nas ruas, nas igrejas, nos cultos.

É assim desde a idade média quando um genocídio foi colocado em prática e mulheres passaram a ser assassinadas em fogueiras.

Com elas, matava-se toda uma epistemologia, todo um sistema de saberes e de alianças.

Queimavam-se as mulheres livres, as que moravam sozinhas, as que não se permitiam calar, as que queriam gozar.

Desde então, ficou estabelecido que mulher, para sobreviver, precisa se conformar a uma hierarquia que coloca o homem como dominante e a mulher como submissa.

Essa hierarquia é atravessada por algumas outras que envolvem racismo e LGBTFobia: mulheres negras sofrem mais opressões, mulheres lésbicas também e mulheres trans idem.

A despeito da cor de nossas peles e de nossas sexualidades, com onze anos já temos noção de que nossos corpos são desejados. Abusos começam com essa idade - ou antes.

Mais da metade dos crimes de violência sexual são cometidos dentro de nossas casas. Por conhecidos, parentes, amigos de parentes.

A casa é o lugar menos seguro para estarmos.

O machismo organiza a sociedade de modo a naturalizar nossos corpos como objetos.

A chave em que somos inseridas é a de puta ou a de santa. Não há outras.

A sociedade elege putas e santas.

Não nos enxerga como sujeitos plenos nem considera que podemos ser putas e santas se assim desejarmos e em momentos diferentes. E, entre as duas coisas, podemos ser o que mais quisermos.

Nossos corpos estão pra jogo para serem ocupados, invadidos, destruídos.

Você só é de fato proprietário daquilo que pode destruir.

Morremos todos os dias, assassinadas por maridos, amantes, namorados, ficantes, desejantes.

Somos estupradas a cada dez minutos - e esse é um número subnotificado em até nove vezes.

Ou seja: é bastante provável que a cada minuto uma de nós esteja sendo estuprada. Quando você tiver acabado de ler esse texto seis mulheres terão sofrido violência sexual.

Meus queridos leitores: nesse oito de março perguntem a uma mulher da sua vida quando ela foi abusada pela primeira vez.

Perguntem com honestidade, como quem quer escutar a resposta. Para sua namorada, tia, mãe, madrinha, mulher, amiga, filha.

Depois se tranque no banheiro e, olhando de frente para a imagem que vê, pergunte se um dia você já foi o abusador de algum corpo feminino.

Na balada, na festa, numa cama, na rua, no transporte público. Esse cara foi você?

Já forçou um beijo? Já prensou na parede sem que ela quisesse? Já fingiu não escutar um "não"? Já seguiu mesmo intuindo que ela não estava a fim mas você não queria mais parar porque, afinal, precisava se aliviar? Já cansou de trair mas ficou irado quando descobriu que foi traído?

Já silenciou uma mulher? Já se fechou com os colegas num pacto de masculinidade para diminuir uma colega de trabalho?

Esse cara já foi você?

Não precisa confessar em voz alta. Basta sair do banheiro e entrar na luta com a gente. Como?

Chamando a atenção do amigo machista na mesa do bar. Cortando a piada misógina feita pelo machão no grupo de zap. Deixando de falar com aquele colega que você sabe que é um abusador. Rompendo o pacto da masculinidade que perpetua esse sistema que, no fim do dia, nos estupra e mata.

Elogiando mulheres. Citando mulheres. Enaltecendo as colegas de trabalho. Parando de silenciar a voz feminina na reunião da firma. Promovendo mulheres, escutando mulheres, prestando atenção no que dizemos e não em nossas aparências apenas.

Essa é a luta que pode levar suas filhas, mulheres, mães, tias e amigas a existirem em paz nesse mundo.

Aqui é bom lembrar que não podemos ser reduzidas a um parentesco ainda que esse apelo talvez seja atraente para chamar você para apoiar o feminismo e se implicar na luta.

Porque não basta falar as palavras certas, é preciso se implicar.

E lembrar que a gente existe para além do parentesco.

Somos sujeitos plenos que têm o direito de existir livremente com poder sobre como cada um de nossos corpos se relaciona com outros, com o meio, com todos os seres desse planeta.

Que todos os demais dias do ano sejam oito de março.