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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Scarpa, Willian Bigode e uma sociedade que venera a ganância

Colunista do UOL

14/03/2023 09h30Atualizada em 14/03/2023 14h23

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Desde pequenos somos ensinados que o destino do trabalho é nos deixar ricos. Tanto faz que a maioria de nós não consiga e que muitos nem sequer arrumem um emprego. O importante é seguir tentando.

E aí, se um dia você ganhar um milhão então será preciso transformar esse dinheiro em dois milhões.

Depois em quatro. Daí em dez. E assim por diante.

O movimento tem que ser sempre em direção ao "mais".

Mais dinheiro. Mais patrimônios. Mais carros. Mais jatos. Mais barcos.

Não é moralmente aceitável parar de desejar acúmulo. Qualquer parada é covardia.

A ideia moral é: quanto mais, mais correto. Quanto menos, menos correto.

Por tudo isso, quando existe uma chance de multiplicar o dinheiro sem nenhum esforço, apenas entregando a gestão do bolo a uma empresa que promete fazer você ficar ainda mais rico do que era ontem, o coração bate mais forte.

Por que não encarar?

Bem, a resposta é longa e ela não diz apenas respeito a não investir em nada que pareça uma pirâmide financeira. Esse é apenas o começo do erro.

Venham comigo.

A lógica do sistema, como lembra Vladimir Safatle, é um modelo de sociedade ligado a uma vida psíquica cuja centralidade é: o ideal de conduta é o ideal empresarial de si. Qualidade vira capital humano.

Somos empresários de nós mesmos. Investimos em nós mesmos. Precisamos dar lucro.

Nossas vidas são calculadas entre custos e benefícios.

O neoliberalismo é, mais do que um sistema econômico, uma forma de vida e uma teoria moral — como bem sabia a vilã Margaret Thatcher.

Você é responsável por tudo o que conseguiu e mais ninguém.

Se fracassou, a culpa é apenas sua.

Se é uma pessoa de sucesso, o mérito é apenas seu.

Nesse sentido, atue por você. Não olhe para os lados. Não existe nada além de famílias e de indivíduos.

Não por acaso, o slogan do fascismo é Deus, Pátria e Família - muito parecido com aquelas palavras estampadas no peito das camisetas com as quais William Bigode e sua família posaram para fotos recentemente: Deus, Família e Brasil.

William Bigode, que é sócio de uma empresa de gestão financeira, acredita muitíssimo em um certo Deus, mas não chegou na parte dos livros sagrados que falam em usura.

Usura seria o crime de cobrar juros para além de um limite legal, decente, legítimo - agiotagem no popular.

Bigode e Scarpa estão no noticiário por terem perdido alguns milhões ao caírem na promessa da multiplicação fácil, rápida e segura do patrimônio.

Não são só eles, claro. É desse modo que uma certa elite financeira sobrevive muitíssimo bem no Brasil.

O professor de economia Ladislau Dowbor ensina mais sobre o tema e diz que os juros praticados pelos bancos no Brasil teriam que ser chamados pelo nome: usura, agiotagem.

Dowbor explica que enquanto a nossa é de mais de 13%, na França é crime uma taxa a partir de 9% ao ano.

"Quando o governo eleva a taxa básica de juros (Selic) para 13,75%, este valor será pago pelo governo aos detentores privados dos títulos da dívida pública, basicamente os 10% mais ricos da sociedade, usando os impostos que pagamos. Ou seja, esses impostos, em vez de financiarem educação, saúde ou infraestruturas, vão para os grandes grupos financeiros, que aqui chamamos de "mercados", diz o professor.

Dowbor se apressa para dizer também que o Estado não se endividou para construir escolas ou porque implementou o Bolsa Família: 82% do aumento da dívida pública resultam de juros acumulados. Juros sobre juros sobre juros.

"Sem nenhuma contribuição produtiva, esses grupos drenam anualmente, só nesta modalidade, cerca de 600 bilhões de reais, ou seja, o equivalente a cerca de 6% do PIB. Esses 6% do PIB podiam se transformar em investimentos produtivos, mas para que um dono de fortuna vai arriscar no mercado real, se pode ganhar 13,75% sem risco e sem esforço?

O que isso tudo tem a ver com Scarpa e Bigode?

Vejamos.

Com juros tão altos, o cara que ia investir numa pequena empresa simplesmente não investe, nem sequer pensa nisso.

A pessoa com dinheiro sobrando (um grupo pequeno no Brasil atual) aplica para que o dinheiro aumente com os juros.

Deixe seu dinheiro trabalhar por você, diz a máxima.

Não é por acaso que a taxa de juros que você paga no cartão (mais de 300% ao ano) e no cheque especial (mais de 100% ao ano) tenham esses valores assombrosos.

É porque é você que está ajudando a pagar os juros do dinheiro dos milionários, bilionários e trilionários.

"Esse volume de juros extraídos de famílias e de empresas reduz drasticamente o consumo privado e o investimento empresarial, atingindo também o emprego, e contribuindo para a desindustrialização do país", ensina o professor.

Alguma parte disso volta para a economia? Com a resposta, Dowbor.

"Não temos esse dado para o Brasil, mas o cálculo equivalente nos Estados Unidos, do Roosevelt Institute, é de que são apenas 10%. Mariana Mazzucato, no caso da Grã-Bretanha, calcula 15%. De toda forma, trata-se de um gigantesco dreno improdutivo, que gera as fortunas impressionantes dos bilionários brasileiros que a Forbes apresenta, e também dos grandes gestores de ativos internacionais.

Detalhe: Desde 1995, lucros e dividendos distribuídos no Brasil não pagam impostos.

Dowbor elabora: "Ou seja, os 290 bilionários que aparecem na Forbes de 2022 são isentos de impostos, com a justificativa de que as empresas que possuem já os pagaram. Naturalmente, a capitalização da empresa e o enriquecimento dos seus acionistas, como pessoas físicas, são coisas diferentes, mas o resultado é que os muito ricos simplesmente são isentos".

Esse é o Brasil que tem hoje 33 milhões de pessoas passando fome, 125 milhões em insegurança alimentar, 40 milhões no setor informal procurando emprego decente.

Devem ser muitos os jogadores bem sucedidos que ficam tentados a multiplicar suas fortunas de modo rápido e fácil. É legal? Totalmente. É moral? Você decide.

Só que tem dias que dá ruim e a pessoa se mete numa aplicação duvidosa que desmorona.

Quando deu ruim para Willian Bigode ele disse a Scarpa, via mensagem de áudio, que, diante do que estavam vivendo, a única coisa a fazer seria rezar.

Rezar, ele completou, era com ele mesmo, era sua especialidade. Rezemos.

Bigode é um cara-família que ama Deus a ponto de fazer camisetas com palavras "Deus, Família e Brasil" sem talvez saber que esteve bem perto de ecoar o "Deus, Pátria, Família" tão usado pelos fascistas.

Tempos brutos. Tempos brutais.

Sobre Deus, eu sugeriria que Bigode lesse os livros sagrados pelo menos até chegar na parte da usura.

Sobre o apreço à família, seria importante que Bigode soubesse que 79% das famílias brasileiras estão atoladas em dívidas e não têm como pagar os abusivos juros cobrados.

Para ler na íntegra o excelente texto de Ladislau Dowbor clique aqui.