Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Novos depoimentos contra Marcius Melhem desenham o assédio como cultura
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Novas testemunhas e vítimas que alegam terem sofrido abusos e assédios por parte do ex-diretor global Marcius Melhem decidiram falar publicamente sobre o que passaram ou o que viram outras pessoas passando.
Depois que Dani Calabresa contou o que teria vivido com Melhem, outras mulheres que trabalharam com o ex-diretor entenderam que elas também estavam enfrentando constrangimentos que, até ali, não eram capazes de nomear.
Essas mulheres, escutando Dani Calabresa descrever os assédios que teria sofrido, conseguiram fazer suas denúncias em ambientes privados e protegidos, mas ainda não haviam falado publicamente.
O silêncio começou a acabar quando, no ano passado, elas notaram que Melhem estava ganhando espaço na mídia descontextualizando, segundo elas, mensagens trocadas entre ele e algumas das subordinadas.
Melhem, depois da demissão por conta das acusações, e de um breve recolhimento, de fato estava colocando seu rostinho no Sol com conivência de parte da imprensa.
Voltava a falar grosso, abria processos contra alguns ex-colegas que estavam apoiando as vítimas, se recusava a se desculpar.
O recado que começava a ser transmitido era o de que ele seria a vítima de uma armação de mulheres loucas e taradas.
De fato, ao meu redor, via pessoas decentes já duvidando dos alegados assédios que teriam sido por ele cometidos. Seriam então as denunciantes todas malucas?
Nessa hora, outras mulheres que se dizem vítimas de assédio que teria sido cometido por ele se reuniram para organizar como levariam a público o que passaram.
Segundo fontes que consultei, elas contam que não estavam suportando a ideia de ver o vilão aparecer como vítima.
Juntas, escolheram como veículo o portal Metrópoles, que nesse 24 de março deu a matéria completa.
Assistir à íntegra da entrevista feita pelo Metrópoles é uma aula sobre assédios e abusos em ambientes de trabalho.
Algumas mulheres entenderão pela primeira vez que elas também foram - ou são - vítimas em seus trabalhos.
Ambientes de assédio podem se disfarçar de ambientes de amor e de diversão.
O assédio acontece muitas vezes - mas nem sempre - na entrelinha do cotidiano.
Um dos depoimentos mais tristes dessa nova leva contra Melhem é o da atriz e roteirista Luciana Fregolente, que conta como Melhem resgatou um vídeo artístico que ela fez na juventude em que aparecia de peito de fora.
O então diretor colocou para os homens da redação assistirem ao vídeo, pausando nos momentos em que o peito dela aparecia. "No dia seguinte, quando cheguei à redação, eu não era mais uma autora; eu era um pedaço de carne", Luciana conta com a voz trêmula.
Quem já trabalhou em ambientes como os que essas mulheres descrevem - quase toda mulher sabe do que estamos falando - certamente terá momentos de gatilho vendo a entrevista.
A gente sente o que elas dizem. A gente é resgatada de imediato, outra vez, para os nossos abusos e assédios.
Assédios morais, assédios sexuais, assédios públicos, assédios privados, assédios na redação, assédios no bar, assédios na mesa de criação.
Assédios que envolvem o achatamento da auto-estima, a retirada de crédito em trabalhos autorais, elogios seguidos de deboches.
O poder do assediador se manifesta numa pseudo-proteção e também na sensação de que estamos em dívida com eles que alegam se esforçar para nos proteger de predadores dentro da corporação. "Você é ótima atriz mas não estaria aqui se não fosse eu. Agora me deve um boquete".
Todo abusador tem estratégia e a estratégia passa pela desqualificação da vítima.
O dominador nunca trabalha apenas com autoridade e violência.
É preciso combinar força com amizade e carinho até para poder seguir com os abusos e assédios.
Por isso não é relevante revelar troca de emails em que a vítima trata o assediador com respeito, alegria, afeto.
Mulheres e testemunhas entrevistadas pelo Metrópoles dizem que há muitas outras pessoas que hoje entendem pelo que passaram, que já denunciaram Melhem mas que não estão prontas para falar em público.
Vendo as entrevistadas contarem suas histórias, a voz sempre embargada quando começam a narrar o que viveram - que hoje sabemos que são processos de re-vitimização, ou o ato de recontar a dor e, de certa forma, revisitá-la - é impossível não se emocionar.
Uma mulher que reclame de assédio ou de abuso raramente faz barulho.
Duas, um pouco.
Para que sejamos ouvidas é preciso que dezenas de nós nos manifestemos.
Preferencialmente apresentando um olho roxo ou coisa que o valha. Nossa palavra isolada não conta muito.
As entrevistas revelam não apenas a rotina de assédios na redação comandada por Melhem, mas também como o assédio era uma cultura na Globo.
Quer aumento? Tem que transar comigo, disse um executivo à diretora Cininha de Paula.
O Metrópoles entrevistou também o acusado. Uma entrevista nervosa em que ele nega, nega, nega.
Mas, quando não nega, diz frases que indicam que o ambiente de trabalho é assim, que essas coisas são normais, que é brincadeira, que é do jogo.
Errado Melhem não tá.
O ambiente de trabalho é assim.
O assédio é do jogo.
O assédio a mulheres em ambientes de trabalho é institucionalizado no Brasil e no mundo.
Brincadeira não é, mas muitas vezes a gente precisa levar como tal.
Você chega na casa do seu chefe para trabalhar e ele está de cueca. Você faz o que? Você finge que é brincadeira e entra rezando para que ele não tente ou force nada com você.
Seu chefe humilha você numa reunião na frente de dezenas de colegas. Você faz o quê? Segura o choro e segue. Como o aluguel vai ser pago se você não fizer isso.
Quando você chega num limite - que para cada uma é um - você fica doente, começa a tomar remédios, a chorar regularmente, a tremer quando chegar ao trabalho e, enfim, tem um burnout.
Nessa hora, te chamam de desequilibrada.
É esse o jogo do assédio que conhecemos bem.
Muitas de nós aceitamos esse jogo de violências porque, mesmo quando entendemos do que se trata, não podemos ou não queremos perder o emprego.
Os depoimentos das novas denunciantes dizem claramente que aquele era o trabalho dos sonhos de quase todas elas. Existem camadas e camadas de desejos e sonhos envolvidas no processo dessas mulheres. Camadas que passam inclusive pela admiração que elas tinham por Melhem.
A simplicidade com que alguns homens insistem em tratar do tema (não bastaria pedir desculpas?) mostra que eles não captaram muita coisa ainda.
Entre as testemunhas que deram a entrevista ao Metrópoles está Marcelo Adnet.
Ele contou que foi durante uma gravação em 2019 que a Dani Calabresa acabou falando com ele o que estava passando.
Adnet disse ter ficado chocado e entendido que naquele momento estava recebendo uma sentença: não se escuta um depoimento como o de Dani sem tomar uma atitude.
No dia, os dois estavam microfonados e a conversa acabou se tornando pública. Foi dessa forma que a história vazou.
Muita gente vai ver a entrevista e pensar: mas era só isso o que ele fazia?
Oprimir aqui e ali, tirar um sarrinho numa reunião, não contar aos roteiristas e atores que eles estavam sendo chamados para outros trabalhos, negar os convites por eles sem que eles soubessem, encostar o pau meia-bomba em um ou outro durante uma reunião, receber uma roteirista de cueca, bater a cabeça da roteirista na parede etc etc etc? mas era só isso?, alguns podem pensar já que estamos falando de uma cultura empresarial.
Vejam: Isso é coisa demais.
Isso é o ambiente de trabalho para mulheres.
Isso é o que a mulher atravessa e, na maioria das vezes, nem entende como violência porque nos é ensinado tacitamente desde cedo que "temos que passar por isso para receber nossos salário porque assim é a vida".
Isso nos apequena, dilacera, moi, devasta, desumaniza, enfraquece, silencia, adoece.
Isso, dependendo da dose, nos mata.
Não pode mais ser assim.
Não, por nossas filhas, netas, sobrinhas.
Não, por todas as mulheres do Brasil e do mundo.
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