Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Mudar protocolo da cobertura não basta; imprensa precisa fazer auto-crítica
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Depois das cinco da tarde as coisas ficam mais claras.
Pelo menos se a tentativa for tentar entender como nós da imprensa colaboramos para o aumento da violência em nossa sociedade.
Basta ligar a TV em alguns canais abertos e ver a carnificina narrada como arte.
São programas que adotam um tom de profunda indignação e revolta em relação ao que mostram na tela enquanto as imagens das mais brutais violências são emendadas umas nas outras atrás do jornalista revoltado.
Não tem ideologia envolvida, dirão alguns. É a vida como ela é.
Não, não é.
Tem ideologia porque - primeiro - tudo tem e - segundo - a violência é vendida como aquela praticada por corpos periféricos e quase sempre negros.
Só diz que não tem ideologia aquele que sabe que sua ideologia é considerada universal e, por isso, invisível.
Se a polícia entra atirando, é elevada à categoria dos heróis - é preciso muita ideologia para construir uma narrativa dessas.
A polícia está ali para resolver a questão, para proteger você e sua família. Vocês podem ser os próximos.
Próximos a quê?
Medo, medo, medo: é a mais potente das ferramentas de sujeição.
Tiro, porrada e bomba.
Por duas, três horas seguidas distribuídos fartamente em canais abertos das nossas televisões.
Crianças veem.
Os pais não ligam ou estão cansados demais para ligar.
O que não pode é ver dois homens se beijando. Aí não tem cansaço capaz de evitar a revolta com essa porcaria de homossexualidade.
Não, não. Coloca aí um metralhando o outro mas poupa meu filho desse amor entre pessoas do mesmo sexo.
As TVs acatam. Entra a metralhadora, sai o beijo.
Submetidos a imagens de violências brutais em doses diárias e exageradas, deixamos de ver a violência.
Passamos a aceitar que a polícia, por exemplo, entre numa favela, enfie uma dúzia de homens em uma casa e os esfaqueie.
Aconteceu. Aqui mesmo. No Rio de Janeiro e há quatro anos.
Morro do Fallet. Basta colocar no seu buscador predileto de internet e verificar os que acabaram sendo responsabilizados pela chacina: ninguém.
É o dia a dia.
Entra com tanque em escola de favela, joga bomba mesmo, não pega nada.
Se sair na TV, vai sair sem a devida crítica.
Apenas para dizer que "demos sim a notícia, parem de dizer que não demos".
A gente enquanto sociedade tá de bouas com essas violências executadas por homens fardados.
Entrar atirando em condomínio do Leblon ou dos Jardins já é outra coisa.
Não pode. Não aceitamos. Onde vamos parar?
Horas e horas de condolências televisivas.
Nesses casos, os mortos têm nome.
Têm suas histórias contadas.
Os 15 assassinados no Fallet não têm nome.
Muito menos histórias.
Eram vagabundos. Suspeita-se. Acredita-se. Não sabemos.
Corta para TV, oito da noite.
William Bonner e sua companheira de bancada (já foi Fátima Bernardes, hoje é Renata Vasconscelos) e, no telão atrás deles, dutos de esgoto jorram cédulas de reais.
Estão falando da corrupção atribuída a governos Lula e Dilma.
Tem vinheta. Tem identidade visual que é pra fixar bem o que estamos contando aqui.
Um horror essa corrupção. Corrupção é o maior problema do Brasil, dizem as vozes na TV.
Não é sonegação (ainda que nos custe mais). E nem evasão (ainda que nos custe muitíssimo mais).
Não é a taxa Selic nem o que ela diz sobre quem ganha quando ela sobe um pontinho - e sobre quem perde.
Para com isso. Tem gente gabaritada cuidando da taxa Selic. Vamos chamar para uma entrevista aqui. Um bate papo mesmo. Ele começa falando, sem que a gente faça nenhuma pergunta, porque assim ele já deixa claro quem é e como é técnico. Depois a gente encaixa umas perguntinhas e podemos voltar a deixar evidente qual o problema desse país.
É a corrupção. É a corrupção. É a corrupção, idiota.
Nada foi provado que envolvesse Lula aos casos de desvio de verba pública encontrados na Petrobras.
Não importa: Pedalinho. Triplex. Olha os vinhos caros que ele bebia! Tá aqui as garrafas, dá um close na imagem.
Prende o homem.
Sergio Moro nos estúdios Globo numa tarde qualquer. Passeia recebido como herói. Fotos, abraços. Esse é o cara. Close nele.
Não foi provado? Foi restituída à pessoa sua presunção de inocência? A gente abre o jornal lendo uma notinha que diga essas coisas e é isso.
Corta para o governo de Jair Bolsonaro.
Tem infinitos escândalos de corrupção desde o começo. Só com uso do cartão corporativo dava para comprar mil triplex e trezentos mil pedalinhos.
O que não tem é vinheta e telão com dutos de esgoto atrás de Bonner e Vasconcelos.
Não tem consolidadas na escalada do jornal diariamente, repetidamente, reiteradamente (afinal, comunicar é repetir) a respeito de como Jair seria o organizador de um esquema de desvio de grana pública que estaria acontecendo há 30 anos e que, quando ele chegou ao poder, foi - naturalmente - potencializado (leiam O Negócio do Jair, de Juliana Dal Piva).
Não tem nome fácil de ser assimilado nas ruas - Mensalão era ótimo, já Orçamento Secreto não comunica tanto assim.
Chama orçamento, gente. Deve ser certinho essodaê.
E as joias?
Cadê a comunicação da notícia com identidade visual? Cadê um apelido de fácil comunicação?
Volta para Jair Bolsonaro candidato.
Não teve escândalo em horário nobre quando ele sugeriu fuzilar a petralhada, nem quando disse que ia levar inimigos para a ponta da praia, uma referência imediata ao local onde corpos eram torturados e mortos na ditadura.
Não teve nada quando ele disse a uma colega de trabalho que só não a estuprava porque ela não merecia.
Não teve apresentador de TV indignado, não teve revolta em telejornal, não teve duto de esgoto com a imagem dele segurando um fuzil sendo cuspida.
Um parlamentar faz elogio ao estupro e o jogo segue como se nada tivesse acontecido.
Estupro, está dito sem ser dito, tá liberado.
Violência sexual é elogio, gente. Deixem de ser chatas.
E se cuidem porque mulher feia não merece essa honraria de ser estuprada.
É tão importante escutar e ver o que entra no noticiário quanto o que não entra ou entra sem ser relacionado à causa.
O aumento de crimes em escolas e creches precisa ser associado à violência usada na comunicação diária do ex-presidente.
Como não fazemos isso, quando um homem vai com um machado a uma creche e degola crianças de dois anos todos somos lembrados de que o horror pode ser infinitamente aprofundado.
Horas e horas de indignação e voz trêmula em horário nobre diante do inominável.
Sim, o horror.
Assim como o horror é um tanque numa escola em favela.
E é um horror que homens fardados sigam assassinando pessoas que morrem sem ter seus nomes divulgados no telejornal.
"Morreram nove", "morreram quinze" é o que dizem sem revelar quem os assassinou e por quê.
E também um horror que haja locais em nossas cidades onde pode-se entrar atirando.
Onde crianças vão às aulas sob a mira de um fuzil.
Onde a democracia não existe nem nunca existiu.
Quando aceitamos comunicar assim uma notícia (ou deixar de comunicar) estamos fazendo nosso papel para a sedimentação de uma sociedade violenta.
Por que não noticiamos como violência o transporte público lotado na volta para a casa dos trabalhadores?
Por que não noticiamos como violência a falta de centros culturais e bibliotecas nas periferias e favelas?
Por que não noticiamos como violência a falta de saneamento básico e ligamos essa imensa violência a outra violência que é, nesse cenário, privatizar a distribuição de água?
Então, sim: a decisão de não divulgar o rosto do assassino para não promovê-lo é boa.
Mas a questão sobre como nós da imprensa acabamos contribuindo para a violência social vai muito além dela.
É preciso ligar o fio entre não noticiar ou normalizar o tanque na escola pública e o monstro da machadinha na creche.
O fio entre ignorar a comunicação violenta de Bolsonaro e o aumento dos crimes de ódio.
O fio entre a formação da ideia de que nossos problemas são basicamente a corrupção e a invisibilidade de séculos de violências cometidas contra minorias políticas.
Comunicar todos os dias. Todo o santo dia.
Não é certo que nos des-impliquemos de tudo o que estamos vivendo, incluindo os horrores mais indizíveis.
Como sociedade, precisamos nos implicar.
E, enquanto jornalistas, seria necessário que nos fizéssemos essas perguntas: como o meu trabalho colabora para a construção de uma sociedade violenta e o que posso fazer para mudar isso?
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