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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mudar protocolo da cobertura não basta; imprensa precisa fazer auto-crítica

Polícia Militar realiza operação no Morro do Fallet no Rio de Janeiro (RJ), nesta sexta-feira (8); durante operação, 14 pessoas foram mortas - BETINHO CASAS NOVAS/ESTADÃO CONTEÚDO
Polícia Militar realiza operação no Morro do Fallet no Rio de Janeiro (RJ), nesta sexta-feira (8); durante operação, 14 pessoas foram mortas Imagem: BETINHO CASAS NOVAS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

05/04/2023 13h03

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Depois das cinco da tarde as coisas ficam mais claras.

Pelo menos se a tentativa for tentar entender como nós da imprensa colaboramos para o aumento da violência em nossa sociedade.

Basta ligar a TV em alguns canais abertos e ver a carnificina narrada como arte.

São programas que adotam um tom de profunda indignação e revolta em relação ao que mostram na tela enquanto as imagens das mais brutais violências são emendadas umas nas outras atrás do jornalista revoltado.

Não tem ideologia envolvida, dirão alguns. É a vida como ela é.

Não, não é.

Tem ideologia porque - primeiro - tudo tem e - segundo - a violência é vendida como aquela praticada por corpos periféricos e quase sempre negros.

Só diz que não tem ideologia aquele que sabe que sua ideologia é considerada universal e, por isso, invisível.

Se a polícia entra atirando, é elevada à categoria dos heróis - é preciso muita ideologia para construir uma narrativa dessas.

A polícia está ali para resolver a questão, para proteger você e sua família. Vocês podem ser os próximos.

Próximos a quê?

Medo, medo, medo: é a mais potente das ferramentas de sujeição.

Tiro, porrada e bomba.

Por duas, três horas seguidas distribuídos fartamente em canais abertos das nossas televisões.

Crianças veem.

Os pais não ligam ou estão cansados demais para ligar.

O que não pode é ver dois homens se beijando. Aí não tem cansaço capaz de evitar a revolta com essa porcaria de homossexualidade.

Não, não. Coloca aí um metralhando o outro mas poupa meu filho desse amor entre pessoas do mesmo sexo.

As TVs acatam. Entra a metralhadora, sai o beijo.

Submetidos a imagens de violências brutais em doses diárias e exageradas, deixamos de ver a violência.

Passamos a aceitar que a polícia, por exemplo, entre numa favela, enfie uma dúzia de homens em uma casa e os esfaqueie.

Aconteceu. Aqui mesmo. No Rio de Janeiro e há quatro anos.

Morro do Fallet. Basta colocar no seu buscador predileto de internet e verificar os que acabaram sendo responsabilizados pela chacina: ninguém.

É o dia a dia.

Entra com tanque em escola de favela, joga bomba mesmo, não pega nada.

Se sair na TV, vai sair sem a devida crítica.

Apenas para dizer que "demos sim a notícia, parem de dizer que não demos".

A gente enquanto sociedade tá de bouas com essas violências executadas por homens fardados.

Entrar atirando em condomínio do Leblon ou dos Jardins já é outra coisa.

Não pode. Não aceitamos. Onde vamos parar?

Horas e horas de condolências televisivas.

Nesses casos, os mortos têm nome.

Têm suas histórias contadas.

Os 15 assassinados no Fallet não têm nome.

Muito menos histórias.

Eram vagabundos. Suspeita-se. Acredita-se. Não sabemos.

Corta para TV, oito da noite.

William Bonner e sua companheira de bancada (já foi Fátima Bernardes, hoje é Renata Vasconscelos) e, no telão atrás deles, dutos de esgoto jorram cédulas de reais.

Estão falando da corrupção atribuída a governos Lula e Dilma.

Tem vinheta. Tem identidade visual que é pra fixar bem o que estamos contando aqui.

Um horror essa corrupção. Corrupção é o maior problema do Brasil, dizem as vozes na TV.

Não é sonegação (ainda que nos custe mais). E nem evasão (ainda que nos custe muitíssimo mais).

Não é a taxa Selic nem o que ela diz sobre quem ganha quando ela sobe um pontinho - e sobre quem perde.

Para com isso. Tem gente gabaritada cuidando da taxa Selic. Vamos chamar para uma entrevista aqui. Um bate papo mesmo. Ele começa falando, sem que a gente faça nenhuma pergunta, porque assim ele já deixa claro quem é e como é técnico. Depois a gente encaixa umas perguntinhas e podemos voltar a deixar evidente qual o problema desse país.

É a corrupção. É a corrupção. É a corrupção, idiota.

Nada foi provado que envolvesse Lula aos casos de desvio de verba pública encontrados na Petrobras.

Não importa: Pedalinho. Triplex. Olha os vinhos caros que ele bebia! Tá aqui as garrafas, dá um close na imagem.

Prende o homem.

Sergio Moro nos estúdios Globo numa tarde qualquer. Passeia recebido como herói. Fotos, abraços. Esse é o cara. Close nele.

Não foi provado? Foi restituída à pessoa sua presunção de inocência? A gente abre o jornal lendo uma notinha que diga essas coisas e é isso.

Corta para o governo de Jair Bolsonaro.

Tem infinitos escândalos de corrupção desde o começo. Só com uso do cartão corporativo dava para comprar mil triplex e trezentos mil pedalinhos.

O que não tem é vinheta e telão com dutos de esgoto atrás de Bonner e Vasconcelos.

Não tem consolidadas na escalada do jornal diariamente, repetidamente, reiteradamente (afinal, comunicar é repetir) a respeito de como Jair seria o organizador de um esquema de desvio de grana pública que estaria acontecendo há 30 anos e que, quando ele chegou ao poder, foi - naturalmente - potencializado (leiam O Negócio do Jair, de Juliana Dal Piva).

Não tem nome fácil de ser assimilado nas ruas - Mensalão era ótimo, já Orçamento Secreto não comunica tanto assim.

Chama orçamento, gente. Deve ser certinho essodaê.

E as joias?

Cadê a comunicação da notícia com identidade visual? Cadê um apelido de fácil comunicação?

Volta para Jair Bolsonaro candidato.

Não teve escândalo em horário nobre quando ele sugeriu fuzilar a petralhada, nem quando disse que ia levar inimigos para a ponta da praia, uma referência imediata ao local onde corpos eram torturados e mortos na ditadura.

Não teve nada quando ele disse a uma colega de trabalho que só não a estuprava porque ela não merecia.

Não teve apresentador de TV indignado, não teve revolta em telejornal, não teve duto de esgoto com a imagem dele segurando um fuzil sendo cuspida.

Um parlamentar faz elogio ao estupro e o jogo segue como se nada tivesse acontecido.

Estupro, está dito sem ser dito, tá liberado.

Violência sexual é elogio, gente. Deixem de ser chatas.

E se cuidem porque mulher feia não merece essa honraria de ser estuprada.

É tão importante escutar e ver o que entra no noticiário quanto o que não entra ou entra sem ser relacionado à causa.

O aumento de crimes em escolas e creches precisa ser associado à violência usada na comunicação diária do ex-presidente.

Como não fazemos isso, quando um homem vai com um machado a uma creche e degola crianças de dois anos todos somos lembrados de que o horror pode ser infinitamente aprofundado.

Horas e horas de indignação e voz trêmula em horário nobre diante do inominável.

Sim, o horror.

Assim como o horror é um tanque numa escola em favela.

E é um horror que homens fardados sigam assassinando pessoas que morrem sem ter seus nomes divulgados no telejornal.

"Morreram nove", "morreram quinze" é o que dizem sem revelar quem os assassinou e por quê.

E também um horror que haja locais em nossas cidades onde pode-se entrar atirando.

Onde crianças vão às aulas sob a mira de um fuzil.

Onde a democracia não existe nem nunca existiu.

Quando aceitamos comunicar assim uma notícia (ou deixar de comunicar) estamos fazendo nosso papel para a sedimentação de uma sociedade violenta.

Por que não noticiamos como violência o transporte público lotado na volta para a casa dos trabalhadores?

Por que não noticiamos como violência a falta de centros culturais e bibliotecas nas periferias e favelas?

Por que não noticiamos como violência a falta de saneamento básico e ligamos essa imensa violência a outra violência que é, nesse cenário, privatizar a distribuição de água?

Então, sim: a decisão de não divulgar o rosto do assassino para não promovê-lo é boa.

Mas a questão sobre como nós da imprensa acabamos contribuindo para a violência social vai muito além dela.

É preciso ligar o fio entre não noticiar ou normalizar o tanque na escola pública e o monstro da machadinha na creche.

O fio entre ignorar a comunicação violenta de Bolsonaro e o aumento dos crimes de ódio.

O fio entre a formação da ideia de que nossos problemas são basicamente a corrupção e a invisibilidade de séculos de violências cometidas contra minorias políticas.

Comunicar todos os dias. Todo o santo dia.

Não é certo que nos des-impliquemos de tudo o que estamos vivendo, incluindo os horrores mais indizíveis.

Como sociedade, precisamos nos implicar.

E, enquanto jornalistas, seria necessário que nos fizéssemos essas perguntas: como o meu trabalho colabora para a construção de uma sociedade violenta e o que posso fazer para mudar isso?