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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A benção Fluzão de Deus: o dia em que meu pai, um ateu, foi convertido

Thiago Silva comemora a vitória do Fluminense sobre o São Paulo na Libertadores 2008 - Photocamera
Thiago Silva comemora a vitória do Fluminense sobre o São Paulo na Libertadores 2008 Imagem: Photocamera

Colunista do UOL

08/04/2023 13h17

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Em 1980, o papa João Paulo 2º veio ao Brasil pela primeira vez.

O país ainda vivia uma ditadura, mas isso não parecia incomodar João Paulo ou parcela significativa de sua Igreja. Nem um pio foi dado por sua santidade a respeito.

Foi recebido como herói, celebridade, santo.

Ruas lotadas para vê-lo passar.

Minha mãe, italiana de Roma que nunca ligou para religião, foi invadida por força misteriosa e, durante o almoço, disse para mim, minhas irmãs e meu irmão: arrumem-se: vamos ver o papa passar.

Éramos crianças, não sabíamos direito do que se tratava, mas era um programa.

Meu pai, ateu, recusou-se: não vou e pronto, disse.

Fomos.

Vimos um borrão lá longe atrás da multidão.

É o papa?, perguntávamos.

Minha mãe dizia que sim e repetia: pronto, podemos dizer que vimos o papa. Vimos o papa! Vimos o papa, gritávamos.

Em casa, meu pai não deu a mínima para nossa aventura.

Meses depois, Vasco e Fluminense decidiriam a taça Guanabara e a torcida tricolor começou a cantar uma canção que havia sido feita exclusivamente para a visita do Papa: a benção João de Deus.

A música era cantada até aquele dia pela torcida tricolor como paródia, letra alterada para "A benção Fluzão de Deus".

Mas durante a decisão o time perdendo para o Vasco por um a zero, saiu Fluzão e entrou João.

Sem que houvesse sido combinado, sem ensaio, sem nada.

Vendo o jogo pela TV com meu pai, torcedor do Fluminense, notei que ele estava incomodado com a torcida.

Pra que cantar isso?, ele dizia. Ridículo, sugeria.

Mas o gol de empate saiu e de imediato foi atribuído à cantoria.

Prorrogação, penaltis, a benção João de Deus cantada sem parar, título do primeiro turno conquistado.

Pronto. Foi o bastante. A música jamais deixaria de ser cantada pela torcida do Flu.

Até hoje, quando o resultado precisa de uma forcinha dos céus, a música é entoada nas arquibancadas.

Mas, naquele dia, meu pai não estava convencido.

Na decisão do título, contra o mesmo Vasco, meu pai quis ir ao estádio.

Fomos.

Mais de 100 mil almas também foram.

Estádio dividido, partida equilibrada, torcida do Fluminense mandando ver em a benção João de Deus, meu pai injuriado e calado.

Jogo indo para o final, música mais forte, meu pai mais tenso.

E então o impossível se deu: meu pai começou a cantar uma música que em nada o representava.

O gol saiu pelos pés de Edinho e o milagre estava sacramentado.

Titulo. Lágrimas. Meu pai em transe.

"Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar" - salve Caetano.

João Paulo 2º não é das figuras mais adoráveis que já passaram por esse planeta.

A Igreja que ele representa, embora bastante diversa, tampouco faz por merecer honrarias.

Mas, depois de ver meu pai ser convertido - pelo menos durante aqueles minutos - entendi que a canção fala menos do papa do que de fé.

Menos de catolicismo do que de confiança.

Na arquibancada, cantada por milhares, trata-se de uma congregação que reúne católicos, judeus, umbandistas, kardecistas, candomblecistas, evangélicos, espiritualistas, agnósticos e ateus.

A religião em questão é o time das Laranjeiras.

A única devoção em jogo é a camisa tricolor.

Eu mesma já testemunhei a música ser cantada e virar placares.

Eu estava no Maracanã quando Washington marcou o gol contra o São Paulo aos 5.648 minutos do segundo tempo e classificou o Fluminense para a semi da Libertadores em 2008.

Eu sei o que vi.

Bobagem, dirão os senhores da objetividade. Isso não existe, repetem.

Eu argumentaria o contrário: quando a fé é muita e a causa é a paixão de milhões isso talvez exista sim.

No futebol, nada pode ser mais bonito do que a comunhão entre um time e uma torcida que acreditam no improvável e até no impossível, e que embalam essa confiança em músicas, danças, catarses. Sem isso, o futebol não é nada.

Encerro com o final da letra de Milagres do Povo, de Caetano Veloso, que contém o verso usado no meio do texto: quem é ateu e viu milagres como eu.

Sobe o som:

Ojuobá ia lá e via

Ojuobahia

Xangô manda chamar Obatalá guia

Mamãe Oxum chora lagrimalegria

Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia

Ojuobá ia lá e via

Ojuobahia

Obá