Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Tirar Cuca do Corinthians sem aprofundar o debate não nos fará ganhar nada
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Esse texto não é sobre Cuca.
Sobre o que mais esse texto não é?
Não é também sobre o estupro que aconteceu em Berna, na Suíça, em 1987 e envolve o atual treinador do Corinthians.
Não é sobre Cuca ser um cara bacana ou não.
Não é sobre Cuca ser bom pai, bom marido, bom filho.
Não é sobre Cuca ser um homem ruim ou malvado.
Não é sobre esse homem apelidado de Cuca.
Esse é um texto sobre cada uma de nós.
Sobre o que a contratação de alguém condenado por uma relação sexual coagida com uma adolescente de 13 anos na Suíça (chama-se estupro aqui no Brasil) fala a respeito do que o futebol sente por mulheres, do que o futebol quer das mulheres, de como o futebol trata as mulheres.
Cuca é um sujeito de fala mansa e alguém com quem podemos trocar uma ideia sobre o jogo de forma bastante interessante.
Eu já fiz isso.
Não se trata de colocar Cuca no centro da praça e apedrejá-lo.
Vou repetir: não é sobre colocar Cuca no centro da praça e destruí-lo às vísceras.
Não vamos a lugar nenhum tentando fazer pó dos homens acusados (de) ou condenado (por) estupro.
Se trata de falarmos sobre que sociedade é essa em que se relativiza o estupro nos casos de o condenado ser branco e poderoso.
Parem para pensar no caso que envolve Robinho e ponderem se a relativização chegou a esses níveis que estamos vendo com Cuca.
Se trata de falarmos que, em 2022, 47% das mulheres brasileiras foram vítimas de assédio sexual ou físico no Brasil.
De que, ao longo da vida, mais de um terço de todas nós somos vítimas de abuso cometido por parceiros íntimos.
Se trata de compreender a crueldade do dado que diz que o lugar menos seguro para uma mulher estar é a sua casa, onde a maior parte dos crimes sexuais acontecem.
Se trata de repetir e repetir e repetir que uma de nós é estuprada a cada oito minutos - e esses números são subnotificados em até nove vezes.
Se trata de olhar para a cultura heterossexual masculina e seu caráter pedófilo.
De falar que a maior parte das vítimas de crimes sexuais são crianças.
Se trata de parar de falar apenas de Cuca, de Robinho e de Daniel Alves como se estivéssemos falando de psicopatas monstruosos e exemplares raros.
Se trata de saber que as mulheres da sua vida já sofreram assédios, abusos e estupros. Basta ter a coragem de perguntar a elas e você vai saber. Sua mãe, sua tia, sua irmã, sua filha, sua melhor amiga.
Essa é a cultura da masculinidade hegemônica. E é ela que precisamos mudar.
Ah, mas nem todo homem faz essas coisas.
Nem todo homem estupra? Verdade.
Mas todos se beneficiam de uma sociedade que estupra, abusa, assedia, objetifica.
Já não me interessa mais saber dos detalhes do caso, se havia esperma de Cuca no corpo da vítima como disse o jornal da cidade de Berna, se o quarto era em L, em V, em X, se Cuca viu, ouviu, participou.
Danem-se os detalhes, porque se nos apegarmos a isso seguiremos olhando para o lado errado e nos entregando à morbidez do crime.
Não é sobre o que Cuca fez. É sobre o que ele não fez.
Ao não reconhecer a gravidade do caso, ao dar os ombros e dizer que não deve desculpas porque nada fez, ele aprofunda nossa humilhação.
Na melhor das hipóteses, Cuca estava no ambiente enquanto uma menina de 13 anos era estuprada.
Eis aí o melhor cenário possível.
Esse foi o treinador contratado por Duílio Monteiro Alves, presidente do Corinthians.
O que poderia abrandar nossa fúria diante da contratação?
Se Cuca chegasse falando coisas como:
Pois é, eu, aos 24 anos, me envolvi num episódio vergonhoso. Eu estava lá. Não vou entrar em detalhes, mas vou dizer que me envergonho do que fiz ou deixei de fazer. Não sabia da gravidade, não pensei na menina, pensei apenas em me incluir num grupo e em ser validado em minha masculinidade. Hoje entendo. Foi um erro, o maior da minha vida. Esse que fala aqui com vocês não é aquele. Hoje compreendo o horror do que aconteceu naquele dia. Viver com essa culpa é pena suficiente, eu poderia dizer. Fica entre Nossa Senhora e eu o tamanho do meu arrependimento. Quero, com o perdão de todas as corintianas, de todas as mulheres que amam esse jogo e de todas as mulheres do mundo, seguir meu trabalho.
Nesse caso as coisas mudariam?
Mudariam. Mudariam bastante.
Mas não foi esse o caso, não foi o que ele fez - escrevi sobre isso.
Para que evitemos linchamentos e sentenças, seria prudente que alargássemos o debate.
Qual é o debate?
É, por exemplo, o que o Corinthians pensa de sua torcida feminina contratando alguém condenado por envolvimento em estupro sem exigir que alguma coisa como a ficcionada no parágrafo acima fosse declarada.
É sobre nossas filhas e sobrinhas crescerem sem que as mãos ou os pênis de adultos invadam seus corpos.
É sobre termos algum controle sobre a nossa integridade, sobre a nossa sanidade.
Sobre não sermos traumatizadas com abusos, assédios, estupros.
Não é sobre Cuca, vocês entendem?
É sobre falar que em dias de jogos de futebol a violência contra mulheres aumenta quase 30%.
Sobre o abuso, o assédio e o estupro dentro dos estádios.
Sobre os relatos de torcedoras do Galo que não puderam celebrar o título brasileiro porque estavam sendo estupradas dentro do Mineirão enquanto o time levantava a taça.
É sobre existir em corpo de mulher nesse mundo.
Sobre nossas irmãs, mulheres trans, que são assassinadas com requinte de crueldade em 80% dos casos.
Sobre sermos o país que mais mata LGBTQs e o que mais assiste pornografia LGBTQ.
Não é sobre Cuca, percebem?
É sobre uma torcida que relativiza o estupro em nome da chance de títulos.
Estamos falando sobre nossas filhas, não sobre Cuca.
Estamos falando de masculinidade, não de Cuca.
Estamos falando sobre nossos traumas, não sobre Cuca.
Estamos falando sobre nossas cicatrizes, não sobre Cuca.
Estamos falando sobre estarmos em guerra e sobre o inimigo ser o corpo de um homem; não estamos falando sobre Cuca.
Estamos gritando: "queremos viver" em berros muito mais nítidos do que os que uivam "Fora Cuca".
Não é sobre Cuca porque se nos fixarmos nele estaremos apenas mergulhando nesse universo sombrio da indignação moral.
Esse lugar onde apenas angariamos devotos para seguir malhando outra pessoa hoje, mais uma amanhã, outra depois de amanhã e nada jamais vai mudar porque o poder se regozija em sua totalidade inabalável com esse jogo de pancadaria.
Vai nos levar aonde essa sanha por punição?
Não longe. Nem até a intermediária da vida.
Não estou mais interessada nesse ambiente da indignação moral porque ele me iguala ao outro lado - ao lado do Deus, Pátria e Família.
Não é sobre quem é bom ou quem é mau.
Todos temos em nós as dimensões do bem e do mal.
Todos transitamos por ambas.
O debate deveria ser sobre como o futebol trata quem o ama.
Ou como a sociedade se organiza para tratar seus cidadãos.
Sobre como racismo, machismo e LGBTfobia sustentam esse sistema econômico perverso.
Sobre como a violência contra a mulher é parte integrante dessa organização social.
Sobre como os homens se protegem uns aos outros em seus pactos macabros e covardes.
Sobre sermos apenas clientes e não pessoas.
Sobre slogans impressos em gola de camisa: respeita as minas, time do povo.
As minas estão sendo recorrentemente desrespeitadas, humilhadas, apequenadas; o slogan agora soa igualmente vazio e ofensivo.
O povo, por sua vez, a cada dia mais excluído por preços indecentes, programas elitistas, transmissões exclusivas em canais pagos.
O debate é esse.
O debate não é Cuca.
Mas Cuca é parte do debate e deveria se implicar nele.
Deveria falar sobre o crime tratando-o com o devido respeito e importância e não como quem se justifica por ter derrubado os tomates da barraca na feira.
Seguiremos esperando aquele que, diante de uma acusação de um crime de violência sexual, dará um passo a frente para dizer: sim, esse cara fui eu, mas não mais. Olhar para trás me deixa enojado e todos os dias eu busco aprender, melhorar, amadurecer, lutar contra opressões.
Só a partir disso a gente poderá parar de relativizar estupros, assédios, abusos.
Seguiremos berrando? Sim.
Os passos estão sendo dados e tem dias que parece que não andamos. Mas andamos sim. Estamos caminhando.
Até ontem, o estupro em Berna nem era assunto. Havia caído no esquecimento sem ter a devida repercussão.
Fomos buscar a história. Não muda nada ter sido em 1987, em 1877, em 1700, em 2023. O crime é igualmente hediondo e a luta é mostrar a recorrência do horror que vivemos há séculos.
Tem dias bons e dias ruins.
Tem coisas que morrem na gente ao longo do caminho, tem coisas que nascem.
A contratação de Cuca me deixou em estado de desencanto futebolístico.
Minhas camisas estão guardadas no armário. Um dia, quem sabe, eu as tire de lá.
Tudo isso para dizer: não é sobre Cuca.
Tirar Cuca do Corinthians sem que entendamos sobre o que essa história é não nos fará ganhar quase nada
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