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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Caso Cuca é complicado: homens e mulheres não estão debatendo a mesma coisa

Colunista do UOL

25/04/2023 11h47

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Começo com o já consagrado "nem todo homem" para explicar algumas coisas.

Quando falo de "homem" como no título, falo de masculinidade hegemônica, essa que a sociedade reproduz com tanta facilidade todos os dias nas escolas, nas Igrejas, nas famílias e em todas as demais instituições.

Falo da ideia constitutiva do que é ser homem: de como se comportar, do que suportar calado, de como não demonstrar emoção, de como virilidade é um tipo aceitável de violência, das tecnologias para não se deixar atravessar por sentimentos amorosos, delicados, sensíveis.

Há homens que buscam escapar desse tipo hegemônico de masculinidade, um tipo que mais parece uma prisão, e lutam contra o machismo que está instaurado em todos nós: em homens e em mulheres.

Mas não há homens que deixem de se beneficiar de uma sociedade machista, assim como não existe pessoa branca que deixe de se beneficiar de uma sociedade racista a despeito de essa mesma pessoa branca se engajada na luta antirracista.

Apontadas essas características, seria preciso dizer que, no caso de Cuca, o debate se complica porque homens e mulheres não falam da mesma coisa.

Violência sexual contra mulheres, como a que envolve o atual treinador do Corinthians, é corriqueira no mundo da masculinidade hegemônica.

Homens se agregam para celebrar as próprias masculinidades e, diante de um corpo feminino, prová-la aos amigos.

O caráter pedófilo dessa heterossexualidade hegemônica precisa ser apontado.

A figura erotizada da menina colegial de uniforme é parte da formação sexual dos homens.

Juntar uns amigos e abusar de um corpo feminino - embriagado ou não - é ritual de masculinidade.

A masculinidade hegemônica não vê nisso um problema, apenas um gesto de validação.

É tão importante fazer quanto contar. Muitos devem fazer contra a própria vontade e por pertencimento.

Assim se ganha capital dentro desse universo de masculinidade tóxica e violenta.

Um homem pode fazer coisas assim e ir para casa ser o pai de família dedicado, que vai à missa, que fala em Deus e enaltece a importância da família.

Família é uma coisa, sexo é outra para essa masculinidade.

E, nesse ambiente, violência sexual não existe porque as mulheres que não fazem parte da família são todas putas potenciais.

Tem, claro, a perturbadora informação de que, muitas vezes, os abusos e estupros acontecem dentro das próprias famílias.

Uma mulher que chega em casa chega a um lugar de risco. É o que dizem as pesquisas.

Para uma mulher, o mundo é outro.

Uma menina de 11 anos sabe, numa simples ida à padaria, que seu corpo está para jogo.

Olhares, cantadas, espremidas no transporte público.

Adultas aprendemos que o corpo de um homem é o corpo inimigo. Entrar num elevador só com homens é risco, aceitar o chamado do chefe para ir a sua sala depois do expediente é risco, andar sozinha na rua é risco, ficar em casa com um tio sobre quem se contam histórias medonhas é risco, ir ao estádio é risco, existir é risco.

A chance de sofrermos abusos é maior do que a de não sofrermos.

E, uma vez vítimas de violência sexual, nossas vidas estão para sempre alteradas.

Não se recupera disso. A gente segue, mas não se recupera.

O que para homens é uma farra, para mulheres é uma experiência de morte em vida.

O que para muitos é mimimi, para todas nós é lutar pelo direito de sobreviver com dignidade.

Não interessa saber de Cuca e de seus colegas no abuso de uma criança se eles superaram o que aconteceu.

Interessa saber se a criança foi capaz de seguir sua vida de forma saudável, se teve ajuda para cuidar da ferida, se a cicatriz está fechada, se ela nunca mais tentou se matar (o jornal Der Bund, de Berna, disse que ela havia tentado se matar depois do estupro).

Ter nossos corpos objetificados, saber que a qualquer momento podemos ser abusadas, a consciência de que o lugar menos seguro para estarmos é dentro de casa, a noção de que somos ensinadas desde cedo de que se formos estupradas a responsabilidade terá sido nossa (não saia com essa roupa, não senta de perna aberta, não passa de biquini perto do seu tio?) tudo isso constitui o que é ser mulher nesse mundo.

Sexo, desde sempre, é uma coisa muito diferente para homens e mulheres. Nosso prazer nunca importou. Existimos para sermos penetradas. Homens existem para penetrar.

Violência sexual, sempre bom frisar, não é sobre sexo; é sobre poder.

Quando um menino é ensinado que deve pegar todas porque virá disso seu capital masculino, a sociedade estimula homens a pegarem quantas mulheres for possível do jeito que for possível.

Tudo isso nos leva a um quarto de hotel em Berna em 1987 e ao que aconteceu ali.

Havia uma criança que, naquele dia, morreu simbolicamente.

Como muitas de nós morremos.

Como muitas de nós continuamos morrendo.

A sociedade que separa homens e mulheres dessa forma está organizada para proteger o abusador e para responsabilizar a mulher mesmo que ela seja ainda uma criança.

Cuca não é exceção a nada; Cuca é a regra.

Temos uma verdade inescapável sobre esse caso: na melhor das hipóteses, Cuca esteve no mesmo ambiente em que uma criança estava sendo coagida a praticar sexo - a lei brasileira dá a isso o nome correto: estupro.

Na pior das hipóteses, ele participou do estupro.

Temos aí os dois cenários possíveis. Não há outros, apenas esses dois. E ambos são abjetos.

Qualquer argumento contra essas verdades é relativizar o caso.

"A menina não reagiu, não havia marcas de violência": claro que não havia. Uma criança contra quatro homens, que tipo de reação viria dessa situação? Quem já passou por isso sabe que a gente fica paralisada. Eu fiquei. Tinha 11 anos, meu abusador tinha 50. Eu não gritei. Não acusei. Não relatei. Eu simplesmente morri.

"A menina não reconheceu Cuca": em estupros coletivos é comum que os rostos dos criminosos não possam ser reconhecidos pela vítima. E, diante dessa relativização, a confissão de que Cuca - no mínimo - estava presente basta para que paremos de usá-la.

"Foi há muito tempo": para quem? Para Cuca e outros que já fizeram coisas parecidas. Para a vítima, posso garantir, foi ontem.

"Por que nunca falaram disso antes?": falaram. Em 1987, a imprensa brasileira relatou e, em parte, celebrou os estupradores como heróis. Depois, uma sociedade organizada nesses termos, está pronta para deixar a história morrer. A ocupação do jornalismo esportivo por mais mulheres, o crescimento do feminismo e o caso Robinho fizeram a história ser desenterrada com força. Eu mesma só soube dela há pouco tempo.

"Se fosse estupro a pena teria sido maior do que 15 meses": Estamos em 1987 e o mundo era outro até mesmo na civilizada Suíça. O fato de não terem encontrado marcas de violência atenuou a pena mas, como explicado acima, hoje já não atenuaria mais diante do que sabemos. Bater nessa tecla é relativizar um crime de estupro, e isso é grave.

"Por que outros times nunca protestaram?": protestaram sim. A torcida do Galo fez um barulho imenso.

Diante de tudo isso acho que o debate é profundo e estamos apenas na antessala dessa história. Tomara que consigamos, enquanto sociedade, ser capazes de falar e falar e falar.

Que os protestos não parem. Tem um mundo novo pra nascer.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL