Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A manicure somos nós
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O Corinthians desceu ao inferno da crise ética ao bancar a contratação de um treinador condenado por crime sexual cometido contra uma adolescente - e que se recusa a olhar de frente para a gravidade do episódio.
O treinador em questão não segurou o rojão e pediu para sair.
Quem não saiu foi a crise.
Para atenuá-la, chamaram alguém que, a que pese - contra e a favor - tantos anos de estrada, poderia arrumar a casa com rapidez: Vanderlei Luxemburgo.
Em campo, não parece que vai ser assim.
Fora de campo, muito menos.
Em questão de horas da contratação, as notícias sobre uma antiga acusação de abuso sexual envolvendo Luxemburgo se fizeram ouvir.
Só que, ao contrário de Cuca, Luxemburgo não foi condenado. Contra ele, nada foi provado.
Mas - e infelizmente tem aqui um "mas" - o depoimento da mulher que fez a acusação é dilacerante.
Ela mentiu?
Nem sempre as coisas são fáceis de serem analisadas em casos de acusações de violência sexual, especialmente se quem acusa for uma mulher pobre e o acusado for um homem rico.
O que sabemos é que o que ela alegou não foi comprovado e Luxemburgo não é, aos olhos da Justiça, culpado de nada.
O que mais sabemos sobre esse tipo de crime?
Que são raras, raríssimas, as falsas acusações.
Sabemos também que são muitos os acusados e muitos os casos que, a despeito dos depoimentos devastadores de quem acusa, não dão em lugar nenhum a não ser na desmoralização de quem fez a denúncia.
Sabemos também que, por causa dessa via sacra, a maioria de nós, diante de um caso e violência sexual, escolhe não acusar.
Por quê?
Porque o mais comum é que aconteça com a gente o que aconteceu com a manicure que acusou Luxa: abandonada, esquecida, dilacerada, deprimida.
Vou repetir o que venho dizendo há algum tempo: não é sobre Cuca, não é sobre Luxa, não é sobre Robinho, Roger Bambu, Pedrinho, Neymar, Cristiano Ronaldo, Hakimi, Ribery, Jobson, Mancini, Marcelinho Paraíba ou Daniel Alves.
Não é sobre condenados ou acusados. Não é sobre predadores ou suspeitos.
Precisamos des-fulanizar o debate.
O que deveríamos debater é uma sociedade adoentada que estupra uma mulher a cada oito minutos.
Que mata três mulheres por dia apenas por serem mulheres (os assassinos normalmente são maridos, namorados, ficantes, amantes etc).
Que mata uma mulher trans ou travesti a cada dois dias (e com requintes de crueldade em quase 80% dos casos).
Que agride fisicamente 26 mulheres por hora (em números ainda muito subnotificados).
Uma sociedade dentro da qual um terço das mulheres já passou por algum tipo de abuso ou assédio.
Uma sociedade que forma homens sob o imaginário do pegador e da virilidade, e mulheres sob a simbologia da indefesa, da que existe para satisfazer desejos alheios, da que não é sujeito e sim objeto.
Uma sociedade que começa a agir assim quando anuncia ainda na maternidade: é menino ou é menina.
Um veste azul - o predador - a outra veste rosa - a presa.
Uma sociedade em que as maiores vítimas de violência sexual são as crianças, e uma sociedade que, ainda assim, esperneia a cada menção à necessidade de haver educação sexual nas escolas.
Quem se beneficia dessa histeria contra aulas de educação sexual? Os abusadores.
Educação sexual não é ensinar a fazer sexo; é ensina crianças e adolescentes a reconhecerem situações de abuso e o que fazer a partir desse reconhecimento.
Educação sexual é prevenção.
Assim como seria prevenção que os clubes dessem aulas sobre machismo e misoginia aos seus funcionários - elenco, comissão técnica, diretoria.
Desde a base - onde, aliás, há relatos múltiplos de crimes de abuso sexual.
Se amanhã decidíssemos tirar do futebol todos os homens que já participaram abusos, assédios, importunações ou estupros quantos sobrariam?
E se decidíssemos tirar do jornalismo?
E da sociedade?
A brutal realidade é a seguinte: todas nós já fomos a garota do quarto de Berna - ou uma hipotética manicure presa contra a sua vontade num quarto com alguém mais forte e poderoso - para algum homem.
Conseguem olhar no espelho e lidar com essa constatação?
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