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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Clubes, TVs e patrocinadores precisam se implicar na luta anti-homofobia

 Bruno Arleu de Araujo, árbitro de Corinthians e São Paulo pelo Campeonato Brasileiro - MARCO GALVãO/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Bruno Arleu de Araujo, árbitro de Corinthians e São Paulo pelo Campeonato Brasileiro Imagem: MARCO GALVãO/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

15/05/2023 10h11

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Nas arquibancadas, a torcida do Corinthians cantava com força "dessas bichas teremos que ganhar" quando o jogo foi interrompido.

Nada de muito novo nesse comportamento; o que tem sido novo é o jogo parar por causa da cantoria homofóbica e só reiniciá-lo quando a torcida parar de exibir violências verbais.

A torcida do Corinthians cantou dessa forma desde o pontapé inicial, mas só aos 65 minutos o jogo foi interrompido pela arbitragem. No telão, os avisos sobre gestos homofóbicos estavam sendo exibidos desde o começo.

Tudo isso é novo. Tudo isso temos que chamar de evolução. Não vamos mudar comportamentos tão estruturais da noite para o dia. A luta é longa e precisamos de aliados.

Quem seriam os aliados? A diretoria do Corinthians poderia ser um aliado chamando as organizadas e oferecendo cursos educativos com alguma contrapartida, como o preço dos ingressos, das camisas etc. Ah, mas as camisas são da Nike. A Nike poderia ser aliada, se implicando nesse processo educativo.

Quem mais? As emissoras que transmitem o jogo poderiam ser aliadas.

Na Globo, pelo que apurei, a explicação sobre a paralisação foi protocolar e nenhum dos comentaristas - nem Caio, nem o novato Diego - aprofundaram indignações a respeito do que estavam vendo.

Mas isso não é novidade, podem dizer alguns. Sim, não é. Mas as coisas mudam.

Até não muito tempo era permitido escravizar pessoas e decapitar seres humanos em praças públicas.

A sociedade muda, quer a gente queira ou não. A dúvida é sobre a velocidade das mudanças.

Seria importante, em nome da aliança contra preconceitos, que quem tem um microfone e fala para milhões se colocasse de modo a enfatizar a importância das batalhas e o fim de cantos homofóbicos.

Ah, mas eles talvez não possam falar de coisas extracampo.

Outro dia mesmo Caio estava eloquentemente elaborando sua indignação contra comentaristas que falam coisas pesadas demais de jogadores.

Isso machuca, ele dizia antes de elogiar o que havia sido colocado pelo colega Pedrinho no dia anterior.

Essa turma tem filho, tem família - argumentavam a fim de explicar por que temos que tratar com mais respeito quem joga, e escolher melhor as palavras quando formos comentar.

Não estão errados no que dizem Caio e Pedrinho, verdade. Mas reflitamos sobre o que dizem, quando dizem e a quem querem proteger quando dizem o que dizem.

A colega deles, Ana Thaís Matos, recentemente jogada aos leões por uma declaração covarde de Róger Guedes depois do jogo contra o Remo, não foi assim protegida.

Ana caiu no linchamento verbal das redes por dias.

Eles se manifestaram indignados contra Róger Guedes? Não? Por quê? Será que Ana não tem família?

O que os dois ex-jogadores, tão dispostos a defender seus colegas em campo, disseram sobre o ocorrido em relação a Ana? Procurei e não achei. Se disseram, queria saber se foi desse modo apaixonado reservado aos parças.

Eu escutei eles dizendo coisas assim: "Já pensou se os jogadores resolvessem criticar comentaristas?". Fiquei feito um John Travolta naquele meme clássico pensando: não são os jogadores que todos os anos elegem os piores comentaristas, eleição que rende matérias, ofensas, violências?

O que disseram sobre as ameaças recebidas pelo time feminino do Corinthians em relação às manifestações contra a violência sexual? Não achei nada também.

O que disseram sobre Daniel Alves e Robinho?

Bem, Diego a gente sabe o que pensa. Estava outro dia mesmo confraternizando com o amigo condenado por estupro numa praia em Santos.

Se no jogo de ontem os comentários fossem de Ana Thais ou de Renata Mendonça é certo que elas se colocariam diante de cantoria e dariam uma explicação do por que isso não pode mais, educando o espectador. Aí, claro, ganham a fama de chatas.

Mas chato é quem se implica numa luta para salvar vidas ou chato é aquele que cala?

Chato não seria ser uma bicha periférica que corre todos os dias riscos de ser assassinada?

Chato não é a vida da sapatão que sofre estupro corretivo para "virar mulher"?

Chato não é saber que boa parte da torcida que ontem berrava "dessas bichas teremos que ganhar" é consumidora dos serviços sexuais oferecidos por algumas travestis?

Chato não é saber que boa parte daquela turma chega em casa e pratica violência física contra suas mulheres?

Chato não é ser informado que em dias de jogo a violência contra a mulher aumenta quase 30%?

Chato não é ser mulher num mundo que nos detesta, nos diminui, assedia, abusa, estupra e silencia?

Chato não seria a constatação de que somos o país que mais mata LGBTQs no mundo e o que mais consome pornografia LGBTQ no mundo?

Chato não é a hipocrisia?

De onde não se espera nada é que nada vem mesmo, diz-se no popular. Mas uma hora precisa começar a vir porque sem essas alianças a luta vai demorar, ainda que não vá retroceder.

Muitos acreditam ser ainda pior o episódio desse domingo porque envolve uma torcida sempre ligada a causas sociais. Mas aí está justamente a questão: o que une esquerda e direita, o que une extrema esquerda e extrema direita, o que une os homens de modo arrebatador é justamente a misoginia.

Lutar pela democracia passando por cima de mulheres é a coisa mais comum do mundo.

Então, é sim lamentável que a torcida do Corinthians não tenha sido a primeira a acordar e a movimentar essa roda para o lado correto. Mas não é surpreendente.

Contra o São Paulo, a torcida do Corinthians, alertada sobre proibição da homofobia na cantoria, fez o que fazem machos amedrontados com as mudanças no mundo: berrou mais alto. Uma cena triste, cheia de histeria e de pirraça.

Mas ela não é a única.

São Paulo, Cruzeiro e Fluminense são três times que, em nome da pretensa ofensa, são mencionados no feminino. O que não quer dizer que essas torcidas também não pratiquem suas homofobias internamente.

Por que o feminino pretende ofender? Porque essa turma acha que mulher é menos.

E por que acham isso?

Porque foram criados para achar. Homens, nessa sociedade, são erguidos em oposição ao feminino: não chora, isso é coisa de mulher. Chuta que nem homem. Deixa de ser maricas.

Homens assim construídos vão achar, naturalmente, que mulher é uma fraquejada que só existe para fins sexuais. Sendo apenas objeto, uma mulher pode ser desfigurada, silenciada, assassinada.

Essa é a sociedade que naturaliza a cantoria homofóbica no estádio.

Apenas parar o jogo e passar um pito não vai nos levar a lugar algum.

Telões modernos, luminosos cheios de mensagens do tipo "amem o amor e odeiem o ódio" também não farão nada por nós.

Educar é o caminho.

Educar jogadores, comissão técnica, torcida organizada, sócio torcedor, comentaristas, narradores. Educar irrestrita e incansavelmente.