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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fazer piada sem ofender exige uma combinação de inteligência com coragem

Leo Lins - Reprodução/Instagram
Leo Lins Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

18/05/2023 10h23

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Faz algumas semanas fui dar uma palestra para uma escola de classe média alta de São Paulo. Filhos de empresários, de políticos e de atletas milionários estavam na audiência. Uma audiência, como vocês devem imaginar, quase que inteiramente branca.

Comecei fazendo uma pergunta: quem aqui se considera racista?

Silêncio e constrangimento.

Levantei minha mão para dizer que eu me considerava.

Um som de absurdamento preencheu o ambiente.

O professor ao meu lado, que havia me convidado para a conversa, levantou a mão dele. Aos poucos, um ou outro levantou a própria mão. Mas não muitos.

Segui no papo explicando que se nosso processo de socialização ocorreu sem contratempos então todos nós seríamos racistas.

E machistas. E misoóginos. E LGBTfóbicos.

Fomos criados por nossas famílias, pelas escolas, pelas Igrejas e pelas instituições para sermos tudo isso.

Deixar de ser é um processo e não uma declaração política. É ação, é movimento, é exercício diário de desconstrução.

Não ser racista é atitude que escapa largamente de ter amigos negros, de gostar de samba, de ter ídolos de pele escura.

Começa pelo entendimento de que nós brancos somos racistas desde a base porque só com essa compreensão poderemos começar a destruir o racismo em nós mesmos.

Todo esse preâmbulo para falar do tal especial de ofensas criado por Leo Lins.

Não é piada se envolve a dor de outros. Não é piada se a declaração aparentemente divertida convida a violências múltiplas porque a diminuição de sujeitos incita sim violências de forma direta e clara.

O humor brasileiro parou na quinta série de uma escola de filhos de latifundiários escravocratas do século 18.

É uma masculinidade infantilizada, abobada, amargurada, fragilizada e racista. Um tipo de masculinidade que, não por acaso, o bolsonarismo foi perfeitamente capaz de mobilizar e engajar,

É um humor altamente cis-masculino-heteronormativo no sentido de que as supostas piadas são elaboradas a partir do ponto de vista do opressor.

É bastante possível fazer piada sem ofender outras pessoas.

Temos exemplos muitos, aqui e fora daqui.

Mas exige um tipo de inteligência que talvez esses humoristas danilogentilizados não tenham, e por isso precisam lutar pelo que chamam de direito de expressão, mas que é apenas privilégio de opressão.

Não é uma mente mediana aquela que vai ser capaz de ironizar o dominador, ou de se autodebochar.

É preciso uma mistura muito especial de inteligência, sagacidade, ousadia e coragem para evitar as piadas fáceis e infantis e encarar o desafio de ridicularizar as estruturas de poder e dominação.

Jerry Seinfeld, há algumas décadas, fez isso. George Carlin idem. Ellen Degeneres - a comediante, não a apresentadora - igualmente.

Temos aqui Paulo Vieira e Tatá Werneck - não por acaso um homem negro e uma mulher. Ambos são humoristas que se recusam a diminuir para rir. Tatá, inclusive, já declarou que precisou de ajuda para poder se despir de preconceitos e, a partir desse novo lugar, criar.

Marcelo Adnet também faz sua graça sem ofender minorias políticas. Maria Bopp usa toda sua inteligência e ousadia para fazer rir de quem está no poder.

Temos aí uma dimensão altamente corajosa do que pode fazer o humor: apontar o dedo divertidamente para o dominador. Mas quem tem essa petulância?

Uma piada racista não é uma piada, é um crime. Uma piada nazista não é uma piada, é um crime.

Temos facilidade em concordar com a segunda frase, mas temos dúvida sobre a primeira. Ao escutá-la berramos: mas e nossa liberdade de expressão?

Por que é assim?

Porque, por conta do racismo, não nos foi ensinado na escola que o colonialismo foi um crime contra a humanidade. Um crime que, ao contrário do nazismo, durou séculos e não anos. Um crime que matou e escravizou milhões de seres humanos.

A indignação que temos contra o genocídio branco é maior do que aquela que temos contra o genocídio negro. Por que, você deveria se perguntar. Por que se uma bomba cai no centro de Paris nossa consternação será maior do que se uma cair no centro de Luanda?

Faria bem ao tal Leo Lins um curso educativo sobre a verdadeira história desse país.

Ele e outros humoristas - que fazem ou defendem manifestações racistas fantasiadas de piadas - poderiam ter a coragem de aprender sobre quais forças organizaram esse país que chamamos de Brasil.

O que esses rapazes que se dizem humoristas fazem não é humor, é ofensa: ofensa à nossa dignidade e à nossa inteligência. A profissão que exercem não é de humoristas, mas de ofensistas.

A luta por liberdade de expressão nada tem a ver com a defesa do privilégio para ofender, diminuir, oprimir, perseguir, apequenar, silenciar.

Liberdade de expressão passa por lutar pelo direito à dignidade de todos e para todos.

O humor brasileiro precisa se feminilizar, escurecer, aviadar, sapatanizar, tresloucar e amadurecer para ser minimamente representativo dessa nação.

Termino com as palavras de Vladimir Safatle: Brasil é o nome que se dá a uma forma de violência.