Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Lula, Zanin, STF e um Brasil que não se importa com contexto
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Lula assumiu em 2003 e, sem hesitar, começou a implementar políticas de autonomia democrática que seus antecessores optaram por ignorar.
Aceitou, por exemplo, a lista tríplice para indicar o procurador-geral da República. Com isso, fortaleceu a autonomia dos procuradores.
Lula também fortaleceu o trabalho da Polícia Federal.
Segundo informações da Agência Senado, no primeiro ano do governo Lula 1, a PF realizou 16 operações de combate à corrupção. No segundo ano, foram 42. Em 2008, a PF executou 273 operações para combater a corrupção. Em 2010, 272 ações. No acumulado dos governos Lula 1 e 2, a PF realizou 1.060 operações.
Como parâmetro, o total de operações contra a corrupção nos dois governos FHC foi de 48.
Lembrando aqui que Fernando Henrique Cardoso nunca respeitou a lista tríplice e indicou para a PGR aquele que ficou conhecido como o Engavetador Geral da República, Geraldo Brindeiro, atitude idêntica à que tomou Jair Bolsonaro em seu desastroso governo.
Lula não é celebrado por ter feito o que fez.
FHC não foi cancelado por ter organizado o governo de modo a barrar incontáveis denúncias de corrupção. Bolsonaro tampouco.
Chegamos ao STF e aqui acho importante seguir contextualizando antes de aprofundar o que penso a respeito da indicação de Zanin.
Em relação à mais alta corte de justiça, FHC indicou aqueles com quem tinha boas relações, para dizer bem pouco: Gilmar Mendes, Nelson Jobim e Ellen Gracie. Uma rápida apreciação na forma como votaram mostra o alinhamento com FHC.
Dos que ainda estão no tribunal, Lula indicou Cármen Lúcia e Dias Toffoli, e Dilma indicou Rosa Weber, Barroso, Fachin e Luis Fux. Uma rápida avaliação da forma como votaram mostra que não há alinhamento com Lula ou Dilma.
Temer indicou Alexandre de Moraes, que nunca escondeu sua simpatia por alguns dos homens mais fortes do (então também forte) PSDB paulista. Moraes, para muitos hoje um herói, surpreendeu geral ao não se alinhar totalmente aos interesses dos que o colocaram ali.
Já Bolsonaro fez duas nomeações exóticas, para ficar no mínimo.
Colocou no mais alto tribunal de justiça um juiz extremamente religioso e absolutamente alinhado aos valores do ex-presidente (basta ver as imagens das apaixonadas reações de Michelle no dia em que Mendonça foi aprovado para a função) e outro que, ainda para ficar no mínimo, passa longe de ter "notório saber".
Em Lula 3, o primeiro indicado é Cristiano Zanin, advogado que ficou ao lado de Lula em momentos de profunda solidão e desespero, lutando praticamente sozinho contra toda uma engrenagem jurídica estruturada para amassá-lo.
Ponto para o recém-indicado.
Mas é pouco para que concordemos com a indicação.
Falta a Zanin o tal do "notório saber"?
Talvez falte. Mas há outros ali no STF sem essa distinção e não houve gritaria nesse tom quando foram indicados.
Falta a Zanin a bem-vinda isenção de interesses em relação a Lula e a seu governo?
Podemos dizer que sim, por mais equilibrado que ele seja. Mas eis aí uma característica que, a não ser por Lula e Dilma, vem sendo bisonhamente ignorada há décadas.
Isso, claro, não deixa a indicação de Zanin mais aceitável. Apenas a coloca em contexto.
É complicado que tenhamos mais um homem branco e heterossexual na função?
Muitíssimo, a meu ver.
A mais alta corte de justiça precisa ter a cara da população que ela representa. E a nossa passa longe disso.
Era, definitivamente, o momento de uma mulher negra, de uma mulher lésbica, de uma pessoa trans, de um homem gay, de um PCD vestirem a capa.
"Ah, mas indicar só por identitarismo não vale", dizem os que não suportam escutar alguém falar "todes".
Quem argumenta nesse sentido acredita que não haja uma pessoa negra ou um PCD com notório saber jurídico. É preconceito em estado puro.
É ruim que não saibamos o que pensa Zanin a respeito pautas progressistas, a respeito do avanço de interesses privados sobre nossas florestas, a respeito dos direitos das populações originárias, a respeito do aborto, das pautas feministas e antirracistas?
Demasiadamente ruim. Temerário, eu diria.
É de bom tom indicar amigos para uma função que exige equilíbrio e isenção?
Não. Mil vezes não.
Tudo isso precisa ser colocado à mesa para que a crítica à indicação seja justa.
Lula não é o único a agir como agiu, mas é o único a ser cobrado com tanta veemência por agir dessa forma (e, diga-se, pela primeira vez em praticamente oito anos e meio acumulados como presidente da república).
Lula foi também o único ex-presidente a ficar mais de 500 dias injustamente preso.
O único a superar uma máquina de moral enviesada e operações cheias de interesses políticos que visavam destruí-lo antes de dar a volta por cima.
O único a ver sua ex-companheira definhar e morrer diante de tantas injustiças.
Lula é um democrata, mas também um ser humano.
Como tal, sujeito a paixões, erros e deslizes.
Na escala dos deslizes cometidos pelos últimos mandatários, a indicação de Zanin não pode ser pintada com o horror que está sendo.
Da mesma forma que não podemos berrar que roubar é errado e considerar igualmente imoral a pessoa que rouba um litro de leite porque a família tem fome ou o empresário bilionário que, em manobra fiscal, desvia 20 bilhões de uma das maiores empresas do país.
Do pobre que ascende exigimos comportamento irretocável.
Lula é fortemente cobrado por isenções que seus antecessores nunca tiveram.
E não é elogiado quando toma atitudes democráticas que seus antecessores escolheram ignorar.
Do rico com poder, não exigimos tanta correção moral e, diante de erros e crimes, tampouco fazemos barulho tão alto.
Podemos condenar a indicação. Eu por exemplo condeno fortemente.
Não era hora de mais um homem branco e heterossexual cujas ideias a respeito das pautas mais urgentes não sabemos quais são.
Gostaria de ver o tribunal começar a ter a cara do Brasil real oficial.
Uma mistura de alguns homens brancos colocada em justa proporção com a entrada de pessoas negras, gays, emergentes, feministas.
Só acho que deixar de ofertar contexto à escolha por Zanin é tirar as graduações que nos fazem aceitar a indicação mesmo discordando fortemente dela.
O que temos hoje no Brasil é uma imensa crise de conjuntura. Contextualizar não é relativizar mas oferecer à circunstância leitura e interpretação justas.
Onde sobra narrativa falta contexto. E sem contexto floresce o fanatismo, o justiçamento e o linchamento.
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