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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que considero democrático silenciar Monark

Monark no "Programa Pânico" - Reprodução
Monark no "Programa Pânico" Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

19/06/2023 14h17

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O que é liberdade?

A pergunta é gigantesca e nossa tendência imediata seria talvez responder: fazer o que eu quiser, na hora que eu quiser, como eu quiser.

É pelo menos esse o conceito que nos é ensinado.

Nessa linha, liberdade seria "ser proprietário de si mesmo", um dos mais básicos valores do liberalismo clássico e inicialmente teorizado por John Locke há alguns séculos.

Ser livre é ser proprietário de si mesmo.

Há alguns problemas com essa ideia tão amplamente aceita.

Acabamos de passar por uma pandemia inédita que nos transformou e que deixará marcas profundas nas gerações que precisaram enfrentá-la.

Perdemos pessoas que amávamos, tivemos que alterar nossas formas de vida, deixamos pelo caminho alguns relacionamentos, empregos, saúde e uma série de outras coisas que demoraremos a elaborar.

Tudo porque, lá do outro lado do planeta, um homem resolveu comer um morcego cru ou relativamente cru e adoeceu.

O simples fato acima alterou a minha e a sua saúde.

A partir dessa brutal realidade, como seguir falando em coisas como saúde privada?

Tudo o que existe é saúde pública e nada mais.

A partir desse fato, como seguir falando em liberdade individual?

Somos seres e corpos em constante relação. Relação com o outro, com os demais habitantes desse planeta, com o próprio planeta.

Não existe nada parecido com o corpo individual.

Nossos corpos são, como explica Vladimir Safatle, estruturas de interface que se interconectam a outros.

É por isso que eu não posso simplesmente decretar que não vou me vacinar ou que não vou usar máscaras.

Eu não existo sozinha. Ninguém existe sozinho.

Desde o nascimento precisamos de interação mais do que de leite. Precisamos do abraço, do afeto, do toque.

O conceito liberal de liberdade de "ser proprietário de si mesmo" é uma ficção que não dá conta da vida ou da sobrevivência.

Entendido isso, entenderemos que não há como eu achar que posso falar o que bem entender e jogar tudo no saco da opinião.

Se a sua opinião coloca a vida de outros em risco, se ela apequena e diminui, se ela colabora para a perpetuação de opressões, então liberdade seria justamente usar recursos democráticos e institucionais para silenciar a sua opinião.

Não é opinião defender a existência de um partido nazista diante do que sabemos da história da humanidade. Liberdade não tem nada a ver com defender o suposto direito de vociferar coisas desse tipo.

Mark Zuckeberg, fundador do Facebook, chama a liberdade de expressão de "ideal fundador da empresa".

Os grupos mais radicalizados da Internet usam a liberdade de expressão como o mais básico dos direitos humanos.

As redes sociais fazem uso desse conceito para disseminar discursos de ódio, engajar usuários em cliques, likes, tretas e pandemônio e, com isso, lucrar. Leiam o perturbador livro A Máquina do Caos, de Mark Fischer.

Liberdade não é nada disso. Liberdade envolve disciplina e regras, gostemos ou não.

Liberdade passa por enxergar o outro em sua totalidade. Envolve responsabilidade, atenção, restrição.

Em 2006, o escritor David Foster Wallace fez um discurso histórico e memorável durante a cerimônia de formatura no Kenyon College, Estados Unidos.

Ao contrário do que se espera desse tipo de pronunciamento, Wallace não pintou um quadro de otimismo ingênuo e ofereceu aos jovens que ali estavam alguns nacos de verdade sobre o que é existir e interagir.

Começou fazendo uma defesa de que universidades devem ensinar os jovens a como pensar.

"Aprender a pensar", ele disse, "significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva."

E seguiu:

"Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.[?]

"Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

"O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos. Esse tipo de liberdade tem méritos.

"Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita".

Wallace foi um gênio da nossa espécie. Morreu muito jovem, aos 46 anos, mas deixou uma obra farta e necessária. Quem quiser ler a íntegra de seu discurso pode clicar aqui.

O texto em questão no Brasil, traduzido pela Piauí, levou o título de "A Liberdade de Ver os Outros". Aqui, poderíamos facilmente adaptar para A Liberdade de Calar os Outros. Talvez Wallace não se opusesse.