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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pequeno manual de sobrevivência para o torcedor do Botafogo

Colunista do UOL

26/06/2023 12h31

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O Botafogo é aquela onda que ninguém viu se formando e que, quando chegou perto da praia, já estava enorme sobre nossas cabeças.

Esse negócio de análise futebolística é mais ou menos como prever quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. Tentar estabelecer contornos objetivos para o futebol, encaixá-lo numa lógica cartesiana, quase sempre é um fracasso. O futebol resiste.

O Botafogo fez um campeonato carioca sofrível e foi o único dos quatro considerados grandes que não chegou à semi. Era um time em formação que não foi visto como tal.

A vitória heroica sobre o todo -oderoso Flamengo no começo do Brasileirão deu à equipe uma ferramenta essencial: confiança.

A vitória sobre o multicampeão Palmeiras, na casa do rival, ofereceu ao país a compreensão do que é esse time de Luis Castro. Quem ainda tirava o Botafogo de zebra já não tira mais.

O torcedor e a torcedora do Botafogo não estão sabendo se comportar, como me disse ontem meu amigo botafoguense Thyago Simas.

É tudo bastante inédito, divino e maravilhoso e, por ser absolutamente novo para muitos torcedores jovens, não existe uma referência de comportamento, de sentimento.

O torcedor e a torcedora do Fogão lidam bem com a melancolia, mas euforia é uma outra enfermaria.

A vantagem abusiva, sólida, imperial de pontos sobre o segundo colocado deixa sonhar, mas com o sonho vem o medo da frustração. Esperança e medo se articulam em um mesmo eixo.

Ficar ali pelo meio da tabela sonhando com a permanência no grupo de elite era, sob alguns aspetos emocionais, mais seguro.

Agora, puxando a fila, no papel do time a ser batido, tudo muda.

Como chegar são e sã ao fim do campeonato?

Eu diria que é jogo a jogo. Quarta a quarta. Domingo a domingo.

Curtir a onda, abraçar quem estiver ao lado, vibrar a cada contra-ataque de manual puxado por Rafael, ajoelhar a cada virada para o gol de Tiquinho, abençoar Eduardo e seu equilíbrio tático, beber um gole de cerveja a cada defesa impossível de Perri, erguer as mãos para o céu a cada arrancada de Junior Santos, aplaudir entusiasticamente cada carrinho ou cabeçada de Adryelson ou Cuesta.

O time do Botafogo está encantado. E a força que vem da arquibancada pode ajudar a não quebrar esse encanto.

Luis Castro teve tempo para executar seu planejamento de resultados que demoraram a aparecer.

John Textor é um CEO diferente que se guia, parece, também pela emoção. O executivo que achou estar comprando uma empresa até notar que estava comprando mesmo era uma paixão.

O fato de Textor ter se apaixonado pelo Botafogo faz toda a diferença na condução da administração.

Uma SAF como nenhuma outra até aqui.

Nem Ronaldo, nem a 777, nem o grupo City demonstram envolvimento afetivo com os clubes adquiridos.

E olha que Ronaldo e Cruzeiro compartilham de uma longa história de amor.

Mas vem de Textor a paixão desmedida que entra no gramado empunhando bandeirão, chora com a torcida em transe, sai entrando em live de torcedor para celebrar o momento, não é capaz de esconder o que sente.

A venda precoce da jovem promessa chamada Jefinho talvez tenha sido uma virada na chave: diante da dor explícita da torcida, Textor pode ter compreendido um pouco mais a respeito do nosso futebol e da alma botafoguense.

É o único time com uma estrela solitária no escudo. O time que imortalizou a camisa 7 e as meias cinzas. O time que vai ao fundo e não morre. A torcida que melhor ilustra a força da poesia que habita o futebol.

Não surpreende que o Botafogo renasça acompanhado do sonho de uma nova ideia de país; que renasça depois de o Brasil adormecer no fascismo e acordar para voltar a dançar.

Escrevo antes de saber se Luis Castro aceitará a proposta do mundo árabe, mas arrisco dizer que ele não aceitará.

Quem escuta suas coletivas pós-jogo tem uma ideia dos valores que o movem e uma noção palpável da emoção que ele sente treinando esse elenco.

Mas o risco de perder seu líder no melhor momento da história recente é dessas coisas que o botafoguense e a botafoguense acreditam ser uma espécie de destino.

Me lembra um diálogo memorável do seriado Seinfeld que acontece entre o protagonista Jerry e George, seu melhor amigo.

Tendo conseguido vender o piloto de um programa que ele e Jerry criaram para uma grande emissora estadunidense, George acha um caroço em seus lábios e decreta que vai morrer de uma doença fatal antes de poder ser bem sucedido. "Deus vai me matar justo agora!", sentencia.

Jerry então diz a ele: mas você não acredita em Deus. E George responde: "Acredito sim. Para as coisas ruins".

O Botafogo está na moda e ver esse time jogar é um prazer para quem ama o futebol.

Olhar em volta e ver as camisas alvinegras da estrela solitária saindo dos armários e ganhando as ruas, vestindo corpos alegres, rostos sorridentes e orgulhosos.

Já é muita coisa.

E a realidade é que, unido como está, confiante como está e alegre como está eu diria que o Botafogo é a onda que vai varrer a praia levando tudo o que encontra pela frente.