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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que temos tanta dificuldade em lidar com nossos erros?

Colunista do UOL

10/07/2023 18h37Atualizada em 11/07/2023 11h34

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Durante uma live, o apresentador Tiago Leifert sugeriu que a torcedora palmeirense Gabriella Anelli, vítima fatal de uma confusão na porta do estádio durante a partida contra o Flamengo, seria a responsável pela própria morte. A declaração chocou muita gente, e Leifert foi para os assuntos mais comentados do Twitter.

Horas depois, por causa da enxurrada de críticas, ele ensaiou um pedido desculpas.

Errar não é um problema. Não deveria ser porque, afinal, todos nós erramos, e erramos em demasia. Faz parte dessa experiência lidar com nossos erros, entender o que nos levou a errar, melhorar.

O problema está em não reconhecer o erro.

Ou, como no caso de Leifert, em reconhecer parcialmente, pedir desculpas e emendar o pedido com um "mas".

Pedidos de desculpas não comportam "mas".

Psicanaliticamente aprendemos que o que vem depois do "mas" é aquilo que realmente queremos dizer. O que, portanto, invalidaria de cara o pedido de desculpas.

Pior: ao "mas" se seguiu a frase "quem hoje é de uma torcida organizada assume o risco. Ela era da organizada".

Aqui o pedido de desculpas se invalida e reforça o que ele disse na live: Anelli, membro da Mancha Verde, teria, por essa visão, assumido o risco de morrer.

O que justifica uma generalização como essa?

Essa estrutura de pensamento é a mesma que naturaliza operações policiais em favelas e periferias.

Vejamos: a criminalização das organizadas é, evidentemente, a criminalização de pessoas pobres.

Faz parte desse modelo ideológico achar que pessoas ricas não são problema, nem no futebol nem em lugar algum. Conheci um rapaz uma vez que repetia que bastava encarecer o preço do ingresso para a pancadaria acabar.

Eis aí a lógica do "vamos invadir a favela em nome da guerra às drogas", como se não houvesse traficantes e usuários no Leblon e nos Jardins.

Nosso futebol é vibrante e alegre também por causa das organizadas.

Criminalizá-las genericamente é compactuar com o sistema de opressão que todos os dias mata, prende, abusa e diminui um certo tipo de sujeito no Brasil, essa nação que declarou guerra ao pobre, às pessoas em situação de rua, ao esquecido.

Há nas organizadas pessoas boas e pessoas más. Pessoas passivas e brigões. Pessoas decentes e vândalos. Como nos condomínios de luxo da Barra da Tijuca. Como em Brasília. Como em todos os lugares.

Se existisse interesse em resolver o problema da violência no futebol as organizadas seriam incluídas no debate, e não excluídas.

Caberia à CBF reuni-las, promover debates, levantar ideias, buscar soluções.

Pedidos para que as TOs acabem vêm do mesmo lugar que não se importa com o extermínio regular de jovens periféricos.

Do mesmo lugar que acredita que a punição é a solução contra a violência.

Das mesmas pessoas que repetem "não são torcedores, são vândalos" e que, com essa declaração desviante, impedem que busquemos soluções dentro do futebol. São torcedores e são vândalos já que as categorias não são excludentes.

Se punição fosse a solução, o Brasil seria um paraíso terrestre: temos 800 mil presos, a terceira maior população carcerária do mundo.

Qual a visão? Prender mais? Exterminar mais? Excluir ainda mais?

Futebol é arena de formação de identidade, é pilar cultural, é base do que somos.

É também arena de masculinidade tóxica, de violências, delinquências e preconceitos.

É, portanto, símbolo em disputa.

Educar é a única solução. Mas para que se eduque é preciso haver interesse político. E não há.

Mais fácil punir e excluir. Mais fácil criminalizar o pobre e suas tecnologias de existência, pertencimento e identidade.

Acaba com as TOs. Faz torcida única. Proíbe bandeira. Proíbe criança de entrar com boneco de pelúcia. Não pode entrar no estádio com livro, tá pensando o quê? Tá na cara que você vai usar esse livro pra agredir alguém. Ou joga o livro fora ou volta pra casa. Apaga aí esse sinalizador. Vamos acabar com a geral e tudo vai melhorar. Quem não tem dinheiro para ser sócio torcedor nem deveria opinar.

Fazer parte de uma torcida organizada não é assumir o risco de morrer. Torcidas organizadas não são as responsáveis pela deterioração do nosso futebol nem núcleo produtor de criminosos.

Torcidas organizadas são capazes de encantar um jogo, de terreirizar um estádio. Reside nelas, como em todos os grandes encontros, a capacidade de revelar o melhor e o pior de todos nós. Sufocá-las não deixará os estádios mais seguros.

O problema do jogo que amamos passa por dirigentes, pela CBF, pelas federações, por empresários, pelo modelo de negócio imposto ao futebol hoje, que encarece tudo, de camisa a ingressos passando pelo consumo das partidas pela TV. Passa por tratar o torcedor como cliente e consumidor e deixar de lado aqueles que não podem ser nem uma coisa nem outra.

Leifert errou. Acontece. Todos erramos. E erramos muitas vezes na vida.

Errar sugere, além de um pedido honesto de desculpas, recolhimento e auto-investigação.

Leifert poderia simplesmente ter pedido desculpas com um ponto final depois do "eu errei".

Mas ele não fez isso e, ao não fazer, errou um pouco mais.