Milly Lacombe

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Sobre chacinas, opressões, contexto e James Baldwin, que hoje faria 99 anos

O escritor James Baldwin faria nesse dois de agosto 99 anos. Um dos grande pensadores estadunidenses e mundiais, Baldwin argumentou brilhantemente a respeito do racismo, suas causas e consequências.

Pacientemente, explicou a seus amigos brancos, e aos brancos em geral, do que se tratava o racismo.

Em debate histórico travado no Talk-Show de Dick Cavett em 1968 com um professor de filosofia de Yale cujo nome pouco importa porque ele representa ali o papel de muitos de nós, Baldwin fez uma argumentação sobre como se dava o racismo nos Estados Unidos e, na sequência, escutou de seu interlocutor que estávamos todos num mesmo barco, lutando contra a solidão e contra obstáculos que nos eram comuns, tentando nos tornar "homens".

Baldwin, bastante calmo, esperou que o professor acabasse de falar e então disse:

"O que eu estava discutindo não era exatamente isso. Eu estava discutindo as dificuldades, os obstáculos, o perigo real da morte que nos é jogada na cara pela sociedade um negro, quando um homem preto, tenta se tornar um homem".

Nesse momento, o professor interrompe Baldwin para dizer que essa marcação entre negros e brancos acaba reforçando e exagerando a separação, colocando as pessoas em grupos dentro das quais elas não deveriam estar. "Eu tenho mais coisas em comum com um acadêmico negro do que com um homem branco que seja contra a academia", disse o professor talvez acreditando que, ao colocar Baldwin como seu par ele decretaria ali o fim da treta. "Por que temos sempre que nos concentrar na questão da cor?", quis saber o professor.

O que se seguiu foi um nocaute cognitivo.

"Te digo o seguinte", começou Baldwin.

"Quando eu saí desse país, em 1948, eu saí por um motivo e um motivo apenas. Eu não me importava para onde estava indo. Poderia ter ido para Hong Kong, para Timbuktu e acabei em Paris, nas ruas de Paris com 40 dólares no bolso e a consciência de que nada de pior poderia acontecer comigo ali do que já havia acontecido comigo aqui. Quando você fala em conseguir se tornar um escritor você tem que ser capaz de trabalhar com todas as suas antenas muito atuantes porque se você der as costas para essa sociedade aqui você pode morrer. E é muito difícil se concentrar em apertar as teclas da máquina de escrever se você estiver com medo do mundo ao seu redor. Os anos em que morei em Paris fizeram uma coisa por mim: eles me tiraram desse particular estado de terror social, que não é uma paranoia da minha própria cabeça, mas um real perigo social visível nos rostos de todo policial, de todo chefe, de todo mundo. Eu não sei o que as pessoas brancas desse país sentem, mas eu posso apenas concluir o que sentem pelo estado de suas instituições. Eu não sei se cristãos brancos detestam negros ou não, mas eu sei que temos uma igreja cristã que é branca e outra que é negra. Como Malcolm X um dia disse: a hora mais segregada da história americana é o meio dia do domingo. Isso me diz muito sobre essa nação cristã. Me diz que não posso me dar ao luxo de confiar a maior parte das pessoa cristãs e certamente não posso me dar ao luxo de confiar na igreja cristã. Eu não sei se os sindicatos e o patronato de fato me odeiam, isso não importa porque o que sei é que não faço parte de suas uniões. Eu não sei se os lobistas do mercado imobiliário me odeiam, mas eu sei que eles me mantém nos guetos. Eu não sei se a secretaria de educação realmente odeia negros, mas eu sei dos livros que eles mandam crianças negras lerem e das escolas que obrigam nossas crianças a irem. Aqui te dou as evidências. E você quer que eu faça um ato de fé me arriscando, arriscando minha mulher, meus filhos, minha família em nome de um idealismo que você me garante que existe nesse país mas que eu nunca vi?"

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O professor, atordoado, ainda tentou responder mas a plateia estava aplaudindo demais e pouco se escutou do que ele tentou dizer.

Seguimos nessa luta para que o extermínio de jovens negros tenha fim, mas ela esbarra em políticas públicas que criam uma narrativa falsa e colocam nela o nome de guerra às drogas para criar mocinhos e bandidos, apontar o holofote para o lado errado e assim seguir justificando as chacinas.

Ainda Baldwin: fizeram a gente torcer para os cowboys sem nos contar que éramos os índios.

O trecho do debate citado acima está no documentário "Não sou seu negro", do cineasta Raoul Peck.

Salve James Baldwin.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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