Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

O que estaria acontecendo no vestiário da seleção espanhola?

A Espanha está na final da Copa do Mundo. É feito inédito e resultado do planejamento de anos que escorre por todas as camadas do futebol feminino espanhol até a base. Mas, ainda assim, é uma surpresa porque o ambiente interno não sugeriria esse final feliz.

Jorge Vilda, o treinador, teve a cabeça pedida pelo elenco antes da competição. Atletas reclamavam de seus métodos, de seu comportamento, de uma suposta falta de talento para a função. A confederação bancou Vilda e afastou as rebeldes.

Algumas voltaram para irem à Austrália, outras se recusaram ou não foram mais convocadas.

O clima nunca foi bom mas o constrangimento ficou escancarado com a vitória na semifinal: em campo, as jogadoras celebraram sozinhas e ignoraram Vilda, que vagou como um zumbi pelo gramado como quem implora um abraço que sabe que não virá. E não veio.

Vilda celebrou com sua comissão, composta por homens.

Agora, depois da conquista da vaga na final, outra vez a festa excluiu Vilda. De modo menos constrangedor porque algumas jogadoras foram abraçá-lo, mas ainda assim ficou evidente o racha.

De imediato, o presidente da confederação fez um pronunciamento responsabilizando o treinador pelo mérito da final. No mínimo estranho já que deveriam ser as atletas as maiores festejadas num momento desses.

Algumas perguntas ficam no ar: a confederação teria bancado uma treinadora cuja cabeça tivesse sido pedida pelo elenco todo?

Se fosse um elenco de homens, eles teriam sido levados mais a sério no pedido para que o treinador fosse desligado?

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Não é raro que saibamos de tretas entre treinadores e elenco, mas é digno de nota que, quando a questão envolve um time feminino, alguns comecem a dizer que as atletas são nervosas, passionais, que levam tudo para o pessoal.

Não é verdadeiro que mulher leve para o pessoal. Não mais do que homens pelo menos. Mas homens, quando manifestam suas paixões, não são lidos como "aqueles que levam para o pessoal".

Se fôssemos, aliás, estabelecer uma competição para ver qual o gênero que mais leva para o pessoal, acho que os dados sobre feminicídio acabariam com o debate em dez segundos.

Homens se socam, se estapeiam, chutam o banco de reservas quando não gostam da substituição e, ainda assim, não há quem diga que eles levam muito para o pessoal.

Mas basta uma mulher chamar o treinador para reclamar de alguma coisa que vai ter alguém para dizer que ela está exagerando, está naqueles dias, está levando para o pessoal.

É uma forma de infantilizar mulheres, uma leitura da situação que perpetua o machismo que seguirá nos classificando entre choronas ou agressivas, entre coitadinhas ou nervosas, entre muito delicadas ou muito brutas.

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Esse essencialismo de gênero (homens são assim, mulheres são assado) favorece o sistema operante que, sabemos, é machista, misógino, racista e LGBTfóbico. Por isso seria importante que não perpetuássemos esses dogmas. Eles servem ao dominador e apenas a ele.

Contra a Suécia, Putellas foi substituída e se recusou a dar a mão ao auxiliar de Vilda ao deixar o campo. Uma cena até corriqueira no masculino e que, no feminino, não deveria merecer análises que usem a lente do machismo para explicar o que fez a craque.

As atletas espanholas devem ter seus motivos, é o mínimo que devemos pensar a respeito da rebelião.

Podemos não ter experiência sobre o dia a dia de um vestiário, mas temos experiência sobre o dia a dia da vida e sabemos onde o machismo nos coloca nas relações de trabalho. Que três atletas reclamem é uma coisa; que o elenco inteiro se manifeste é outra diferente.

Mas estamos no terreno da especulação. Não há informações para além do que sabemos sobre o que houve antes da Copa e do que podemos observar durante as celebrações que deixam o treinador e sua comissão técnica de lado.

É de se imaginar que, perdendo ou ganhando, as espanholas venham dizer publicamente o que está acontecendo.

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Se a Espanha for campeã, não será a primeira vez que um elenco rachado com o treinador vencerá. Se perder, talvez tenhamos acesso mais rápido à verdade em relação ao que está acontecendo entre comissão e elenco.

Certo que relações humanas são complexas e intensas. É possível que haja um reencontro entre comissão e atletas em caso de conquista. Possível que a paz seja alcançada e fiquem todos e todas bem.

O que não deveria mais ser possível é que continuemos a usar a lente do machismo e da misoginia para analisar aspectos tão corriqueiros das nossas vidas e que dizem respeito à condição humana e não a sermos mulheres ou homens.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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