Milly Lacombe

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Final do Brasileirão feminino teve êxtase mas também exposição de traumas

A Ferroviária encarou um estádio lotado de corintianos e corintianas sem se importar com a pressão. Fez seu jogo de marcação sufocante e anulou o melhor do time de Arthur Elias: o toque de bola, as triangulações, o jogo coletivo. Deu certo e a Ferrinha, no contra-ataque, abriu o placar. Um Corinthians nervoso não achava o caminho do gol e parava na marcação. Chutões passaram a ser abusados mesmo que não estivessem dando em nada.

As 42 mil pessoas na arquibancada incentivavam mas em campo as trocas de bola não saíam. Até que Elias resolveu mudar antes mesmo do intervalo. Tirou Jaqueline, que não ia bem e tentava resolver as coisas na individualidade, e colocou Portilho, que deu outra movimentação ao time.

O Corinthians foi pra cima e obrigou a goleira Luciana a fazer alguns milagres antes de marcar seu primeiro gol. O jogo abriu e melhorou.

No segundo tempo, o Corinthians voltou mais disposto e, quando a lateral esquerda Thamires apareceu como centro-avante para escorar cruzamento, o time virou. Finalmente, o Corinthians do toque de bola apareceu.

Sétima final consecutiva, penta-campeão, maior time feminino da história do futebol brasileiro. Uma imensidão.

Dia de festa para o futebol. Estádio cheio, jogo emocionante, despedida de Elias, homenagem a inigualável Grazi, festa da Fiel e desse time tão incrivelmente vencedor.

Globo e Sportv transmitiram a partida para o Brasil. Parte da construção do futebol feminino passa por esse tipo de incentivo. Mas nem tudo é festa e celebração.

Na Globo, comentários de Ana Thais e Caio, dupla que está fazendo muitos dos jogos do futebol feminino. Sempre que vejo Caio nos comentários me pergunto por que escalar para um jogo de mulheres o profissional que relativizou a participação de Robinho no estupro cometido na Itália. Não é por acaso, não é acidente, não é desatenção.

Vejam, não se trata de demonizar Caio mas sim de tentar entender por que é ele o escalado se há tantos comentaristas mais sensíveis na casa.

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Por que não Paulo Cesar Vasconcellos ou Lédio Carmona, por exemplo?

Além de ambos entenderem mais do que Caio a respeito de futebol feminino, nenhum deles relativizou estupro publicamente.

Pode parecer bobagem, mas está longe disso. Falar do que parece ser um detalhe é importante porque é através dessas escolhas que o pacto da masculinidade se perpetua.

A verdade é que é mais importante para Caio comentar jogos femininos do que para o futebol feminino ter Caio nos comentários.

É assim que ele deixa para trás a lamentável declaração feita sobre seu amigo Robinho e o caso do estupro: sem fazer uma auto crítica decente, sem precisar se manifestar contundentemente sobre a violência de gênero, sem pedir desculpas. Escalado para as competições ele vai se firmando como um simpático comentarista que respeita o jogo feminino.

Mas há respeito às mulheres quando o estupro é relativizado?

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Caio pode ter se arrependido? Pode ter entendido o que fez ao relativizar estupro em rede nacional de TV? Pode ter percebido que sua amizade com Robinho o impediu de dar uma opinião decente? Sim, sem dúvida. Mas, ainda assim, não é o bastante para ser escalado para um jogo do feminino se nem especialista nesses torneios ele é.

Infelizmente esse tipo de crítica precisa seguir sendo feita.

O mundo está mudando, mas a pirraça contra as mudanças ainda é grande.

Essa semana mesmo teve repórter perguntando para jogador da seleção masculina como eles estavam se solidarizando com Antony num momento tão difícil para ele. Antony é acusado pela ex-namorada de violência doméstica.

Não é por acaso. Não é acidente.

Assim como não é o acaso que faz com que o time masculino do Corinthians ignore a final do time feminino no Brasileirão. Nenhum jogador deu as caras ou manifestou apoio público antes do jogo. Não houve quem aparecesse, quem incentivasse, quem apoiasse.

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As mulheres estão sendo excluídas e punidas pela coragem de se manifestarem contra violência de gênero durante a passagem de Cuca. Os homens tomaram o manifesto delas de forma pessoal e os dois CTs se separaram.

É mais um exemplo de como o mundo masculino se organiza para se proteger. É violento e covarde e ainda vai demorar para mudar. É o destino clássico de quem ousa se manifestar publicamente contra a violência de gênero.

A diretoria poderia ter feito alguma coisa, promovido uma campanha de incentivo do masculino ao feminino, aproximado os dois CTs, mas optou por calar. Calar, evidentemente, é tomar partido.

A final do Brasileirão foi um dia cheio de emoções, um dia para celebrar e para se orgulhar. Um dia para a gente entender que a luta nos trouxe até aqui mas que muito mais luta é preciso para nos levar adiante.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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