Refundar o ensino médico no Brasil
Uma amiga precisou passar por cirurgia corriqueira recentemente e, na véspera do procedimento, nos pegamos falando com preocupação das chances de ela ser abusada no centro cirúrgico depois de sedada. Mulheres não deveriam, na iminência de passar por uma cirurgia, se encontrar em estado de tensão para possíveis estupros cometidos em centros cirúrgicos, UTIs etc. Mas essa é a realidade de ser mulher no Brasil e era sobre isso que falávamos na véspera da internação.
E é também a realidade da medicina brasileira, que corre para xingar colegas cubanos em aeroportos a fim de deixar claro que não são bem vindos ainda que estejam chegando para trabalhar no cuidado das populações mais vulneráveis que moram em locais remotos para onde nenhum deles se dispôs a ir.
Essa que não hesitou em vazar exames da ex-primeira-dama quando ela estava internada e em coma e depois trocou mensagens torcendo para que ela morresse.
A medicina no Brasil é branca, oligárquica, masculina e heterossexual e carrega com ela todas as opressões de raça, classe, gênero e sexualidade.
Não foi o acaso que fez a maior parte dessa classe votar em Bolsonaro e apoiar o fascismo. Como curiosidade mórbida, o fato de que, na Alemanha dos anos 30, os médicos também fecharam com Hitler.
Escrevo tudo isso mobilizada pelo grotesco gesto da punheta coletiva realizada por estudantes da Unisa durante um jogo de vôlei feminino que virou notícia essa semana.
Esses delinquentes são os futuros ginecologistas, anestesistas, pediatras, neurologistas, psiquiatras que atenderão nossas filha, irmãs, amigas, sobrinhas, mães, netas. São alguns dos futuros estupradores dos centros cirúrgicos, UTIs e consultórios.
Homens que resolvem chamar atenção para todas as suas inseguranças e vulnerabilidades abaixando as calças e levando as mãos ao único órgão em seus corpos que sabem onde fica e qual a função.
A cena desses jovens correndo com suas calças caídas e seus membros parcialmente rígidos contém muitas camadas de interpretação. Está ali o tamanho minúsculo de suas almas. Está ali o contorno rastejante de seus espíritos. Está ali um retrato triste e real do que é a prática da medicina no Brasil.
Que tenhamos evoluído para uma sociedade que acha ok pagarmos muito caro por um seguro-saúde para, quem sabe, termos a sorte (a depender da aprovação da administração do seguro que pagamos religiosamente) de frequentar hospitais cuja gestão visa o lucro, são administrados como empresas e têm aparência de shopping center é uma constatação que deveria revoltar.
Se um rapaz come uma carne crua do outro lado do mundo e isso afeta a minha e a sua saúde, como podemos falar em saúde privada? Toda saúde é pública porque estamos em inter-relação e não há a possibilidade de existimos sozinhos.
Saúde privada é uma contradição de termos. Não existe a sua saúde ou a minha saúde; existe a nossa saúde. Não existe nada parecido com saúde privada, mas fingimos acreditar que existe.
"Nem todo médico", berrarão alguns.
De fato, nem todo médico. Conheço médicos maravilhosos, honestos, íntegros e que, mais do que dinheiro, poder e prestígio, amam cuidar, tratar e curar. Meu irmão é um deles.
Temos o SUS, temos médicos de família, temos gente bacana e decente nos locais mais improváveis.
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Quero receberSeria sempre importante lembrar que estamos falando de um sistema de poder e não de um desvio de caráter necessariamente. Um sistema que começa nas universidades e que faz uso de tecnologias coloniais, misóginas e racistas para se reproduzir.
É urgente socializar a medicina no Brasil. Urgente criar universidades de medicina para pessoas periféricas, negras, indígenas, feministas. Urgente feminilizar e escurecer a prática sob bases humanas e não liberais. Urgente formar médicos educados com valores antimachistas, antirracistas, anti-LGBTfóbicos, antimisóginas.
Um bando de homens brancos correndo com as calças arreadas e seus membros semiflácidos dentro e uma quadra esportiva a fim de tirar a atenção de um jogo de mulheres e achando que está exibindo sua virilidade fala quase tudo o que precisa ser dito sobre o ensino da medicina no Brasil.
Um escândalo que, mesmo depois de revelado, demorou para encontrar reação da universidade que abrigou os delinquentes.
O ensino privado tende a demorar a agir porque alunos são também clientes nesse mundo neoliberal que transformou tudo em empresa. Não expulsar os marginais seria formar médicos que, em uma década ou menos, abusarão, assediarão, estuprarão e matarão. Expulsar é o mínimo.
Mas expulsar não basta. Deveriam ser obrigados a passar por um reformatório, aprender sobre o que significa ser gente nesse mundo, aprender sobre solidariedade, decência, dignidade.
Sobre o que é ser mulher e sobre o que é ser homem. Sobre consciência de classe. Sobre o que é o Brasil e a vida para além de seus pênis meia-bomba e de seus cérebros vazios.
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