Milly Lacombe

Milly Lacombe

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
OpiniãoEsporte

Sobre pisadas na bola

Nessa segunda, 2 de outubro, não há ninguém no mundo da bola indiferente ao baixinho Soteldo. Depois de fazer malabarismo sobre a bola na partida contra o Vasco,subindo nela com os dois pés feito um acrobata enquanto o marcador o olhava sem saber o que estava acontecendo, Soteldo virou assunto nacional.

Pode? Não pode? É legítimo? É babaquice?

Quando Soteldo subiu na bola como quem sobe em um caixote para ver além do muro o Santos vencia a partida por 3x1. O estádio gostou do que fez seu jogador. O marcador Sebastian se sentiu ofendido e, depois de passado o susto, partiu pra cima de Soteldo dando safanões. Como ousas?

O mundo do futebol, que não precisa de muito para rachar, rachou. Há quem recrimine e quem apoie. Há quem ache graça e quem se sinta ofendido.

Eu estou no time dos que gostam e vou tentar explicar.

Para ter certeza se gosto mesmo imaginei Soteldo fazendo isso contra o Corinthians. Eu ia gostar, a verdade é essa. Ia ficar possuída com o resultado, ia xingar o jogador até a quinta geração de Soteldos, mas ia curtir a petulância e a criatividade.

Quem não gosta fala em falta de respeito.

Eu entendo que a leitura possa ser essa. Mas argumentaria aqui que falta de respeito pelo jogo é outra coisa.

É, na minha concepção, por exemplo um time que se recusa a jogar e aposta em faltas táticas. É a atuação do VAR (como foi no penalti para o Santos quando o Vasco era melhor em campo). É uma torcida que cala quando seu time mais precisa. É contratar jogador e treinador acusado e condenado por violência de gênero. É ser grosseiro em coletivas. É lucrar com o racismo sem atuar no seu combate. É cobrar 400 reais pela média de ingresso numa final.

Continua após a publicidade

Pisar na bola é transformar um time em SAF e vender para uma corporação financeira com sede em Miami por preço de banana. Pisar na bola é liquidar a base inteira muitas vezes sem que saibamos quem exatamente está ganhando com isso. Pisar na bola é dizer que defende a luta pela democracia, fazer uma festa em nome dessa luta e não chamar seu protagonista. Pisar na bola é se deixar fotografar ao lado de ajudante de ordem de fascista sorridente e com uma taça na mão.

Há quem critique Soteldo porque futebol, alegam, precisa ser eficiente.

Eficiência é um conceito liberal que não diz muita coisa. Vejamos. Uma empresa que opere no azul, gastando o mínimo com mão de obra, distribuindo de forma inteligente e cobrando razoavelmente por seu produto a ponto de, todo semestre, distribuir lucro é considerada eficiente. Não importa que ela destrua florestas e polua rios para fazer tudo isso. Essas são externalidades no mundo liberal.

Eficiência é balela. Há muitas coisas envolvidas que são invisíveis aos cálculos.

Num mundo decente talvez celebrássemos coisas como afetos nobres colocados em circulação, relações, amores, paixões, alegrias, solidariedade, empatia.

Soteldo fez o que achou que devia fazer naquele momento. Chamou a torcida. Deixou o Vasco descontrolado. Expôs a fraqueza da arbitragem para lidar com o inusitado.

Continua após a publicidade

Só fez porque estava ganhando, disseram muitos. Sim, é verdade. Porque coisas desse tipo só podem ser feitas com vantagem no placar. Os grandes dribladores do nosso futebol não saiam driblando a esmo quando o time estava perdendo. Mas, com o placar a favor, garrinchar passa a ser um caminho para destruir um pouco mais o rival.

Soteldo levou amarelo. A arbitragem explicou que deu amarelo porque ele, depois do lance, discutiu com o adversário. Uma explicação que não explica nada.

Sebastian, que perdeu as estribeiras e saiu tentando bater em Soteldo, também levou amarelo - o que indica que o juiz achou que Soteldo e Sebastian erraram igualmente.

Soteldo ficou no campo com cara de menino arrependido. Achei até que pediria desculpas pelo que fez. Não acredito que tenha pedido, o que muito me alegra. Mas o sistema é bom em colocar todos nós em conformidade, agindo na linha, domesticando nossos corpos. Espero que Soteldo nunca perca essa ousadia de vista. E, claro, que jamais ouse fazer essa estripulia contra o Timão.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes