Trocando em miúdos a já famosa coletiva de Abel depois da eliminação
Falar de Abel Ferreira é sempre movimento arriscado. Abel já colocou os pés na dimensão das coisas sagradas que envolvem a identidade palmeirense. Desse modo, criticar Abel é, para o torcedor, criticar uma figura intocável e que já não pertence mais às coisas mundanas. Ainda assim, é dever do jornalismo seguir apontando o que deve ser apontado sem deixar de entender o caráter mitológico que a história do encontro entre Palmeiras e Abel tem.
Abel é um treinador muitíssimo acima da média. O que ele fez com o Palmeiras não tem precedente no futebol brasileiro - talvez nem no mundial - se considerarmos a rapidez com que o sucesso foi alcançado e mantido. Há coisas quantificáveis, como títulos e equilíbrio financeiro - e coisas nem tão quantificáveis de imediato, como novos torcedores pelo Brasil, ligação afetiva da massa com o clube, alegria, orgulho, engajamento. Há um Palmeiras antes de Abel e um depois de Abel.
Mas, conforme Abel foi adquirindo confiança e idolatria, as coletivas foram se tornando momentos bastante constrangedores.
A da noite da eliminação para o Boca talvez seja o ápice desse espetáculo de horror.
Abel, enfadado, dá a impressão de que o jornalismo brasileiro é medíocre, que as perguntas são de baixa qualidade, que os repórteres são ruins no que fazem. Há, claro, perguntas ruins, perguntas desnecessárias, perguntas longas que mais parecem um postulado, perguntas que poderiam ser feitas em uma frase mas levam minutos dando voltas em si, perguntas boas, perguntas excelentes, perguntas corajosas. Tem de tudo. Mas, por causa da postura desafiadora de Abel, a voz de quem faz as perguntas agora é trêmula. A minha certamente seria se eu fosse um desses profissionais.
Durante a coletiva pós-jogo dessa quarta-feira, Abel não precisou de dois minutos para dar sua primeira canelada. O corajoso jornalista escolhido para começar a chuva de pontapés quis saber por que insistir com os mesmos 11 da Bombonera se o jogo não foi bom. Abel respondeu perguntando se o repórter sabia quantos arremates fez o adversário. O repórter deve ter dito que não. Abel foi para o ataque: "Devia saber. Tá tão bem informado? devia saber".
A impressão que temos é a de que Abel acredita que o corpo jornalístico acha que sabe mais do que ele sobre tática, técnica, estratégia etc e se emputece quando pressionado com perguntas sobre suas escolhas. Para contra-atacar, Abel, sempre que pode, sugere que sabe mais sobre jornalismo do que os profissionais sentados a sua frente. É comum que ele mesmo faça as perguntas que consideraria adequadas, estilo Salvador Hugo Palaia.
Acho perfeitamente compreensível que um treinador eliminado há minutos esteja de saco cheio desse protocolo rígido, de ter que falar sobre o que acabou de acontecer, de precisar dar a cara a público e explicar o que nem ele ainda talvez tenha entendido. Mas a questão é que os repórteres estão trabalhando, o torcedor está esperando e o contrato exige esse teatro. Se é inevitável, podemos apenas tentar nos respeitar uns aos outros. Criticar o formato rígido das entrevistas apontando o dedo para a Conmebol nenhum homão faz.
Na segunda pergunta da noite o repórter observou que o time melhorou com a entrada de Kevin e Endrick e Abel disse que não foi por isso que o time melhorou. Melhorou, segundo o treinador, porque ele mudou o sistema de jogo.
Na pergunta seguinte o colega citou até Drummond para (imagino) ver se Abel se comoveria com a poesia de um de nossos maiores artistas, mas Abel não apenas não se comoveu como devolveu um tiro de meta. "Você quer que eu diga que o responsável pela derrota fui eu? Eu digo". Não me pareceu que era isso o que o repórter queria. Ele estava apenas buscando que Abel de alguma forma dissesse como ele se implicava na eliminação. Não rolou. Fomos para o ambiente do tudo ou nada, como numa briga ruim de casal. Tá, tá bom. O errado sou eu. É isso que você quer que eu diga? Sou eu o errado. Tá dito.
Abel aproveitou a ocasião para dizer que sabe o que é a imprensa brasileira, que o mundo inteiro sabe. Bem, de fato. Como em todo o lugar do planeta, há pessoas boas e nem tão boas fazendo jornalismo. Será que ele estava se referindo à turma que noticiava a Lava Jato feito assessoria de imprensa, divulgando mentiras durante anos? Temos esses entre nós, verdade. Mas temos craques também. Não se toma o todo pela parte e Abel deveria saber disso assim como o repórter deveria saber quantos chutes no gol foram dados.
O colega Paulo Massini, movido por pura coragem, questionou de forma muito educada a teimosia de Abel não escalando os miúdos logo de cara, dado que nos três tempos anteriores a falta das crias foi sentida. Abel respondeu perguntando quem era o treinador da equipa.
A essa altura já estávamos dobrados no chão em constrangimento. Mas era só a metade do calvário.
A próxima pergunta poderia ser sobre qual o filme que Abel viu esse ano que mais gostou, qual o restaurante predileto em São Paulo, qual o doce que mais gosta. Mas não. Um querido corajoso perguntou de novo sobre os miúdos. Eu, se estivesse na sala, teria saído correndo.
Abel respondeu dizendo que não queria falar de hipóteses, mas de fatos. E os fatos diziam que o Palmeiras foi melhor, mas o Boca fez o que veio fazer e ponto. Ficar falando de "e se isso e se aquilo" não levaria ninguém a lugar algum.
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Quero receberAbel esqueceu que no começo da coletiva foi ele que disse que a bicicleta de Roni poderia ter mudado tudo. Resta saber quando a condicional pode ser usada. Depois ofereceu um ditado: "eu durmo na cama que eu faço". Ficou vago e ele explicou: ele ganha e perde com as próprias ideias, não com as ideias dos outros. Em seguida, num embalo só, foi dizendo que ninguém gosta de ganhar mais do que ele, talvez igual, mas não mais, que ele faz o melhor que pode, que agora ele e sua equipa são vítimas do próprio sucesso, que colocaram o sarrafo muito alto, que sente orgulho de treinar o Palmeiras e em seguida listou alguns méritos.
Depois disse que a pergunta que deveria ter sido feita era sobre o guarda-redes do Boca, que esse sim fez a diferença. Seria a coletiva mais curta do mundo: uma pergunta, devidamente aprovada pelo treinador, circulando.
Mas eis que, como num bom filme, no final da coletiva tudo é revelado. A penúltima pergunta circulou pelo fato de que nada pode apagar o que Abel já fez no Palmeiras. Abel então deixou tudo na mesa: "Se não apaga, parece". O ressentimento que estava apenas alongando à beira do gramado entrou em campo.
Eis aqui o centro de tudo. Abel se sente injustiçado. Se sente criticado além da conta diante de tudo o que já fez. É possível entender esse sentimento, claro. Mas, ainda assim, ele não explica as patadas.
Podemos melhorar enquanto corpo jornalístico? Sair da mesmice dos questionamentos? Alargar a visão? Podemos sempre. Cabe a cada um de nós buscar esse aperfeiçoamento. E cabe a Abel, o maior treinador da história do Palmeiras, se implicar nesse processo todo também. A dimensão do sagrado não vai ser mais perdida. Abel já está lá. Mas acontece que o resto de nós não está e nosso trabalho manda perguntar e pedir explicações aos treinadores jogo após jogo madrugada a dentro. São as regras e, a menos que alteremos esse formato, assim seguirá sendo. Que possamos melhorar e nos apoiar enquanto classe que trabalha, ama e vive do futebol.
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