Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Lutar pela vida de palestinos passa por reconhecer a dor de israelenses

O escritor italiano Primo Levi, sobrevivente dos campos de concentração durante a Segunda Guerra, tinha um sonho recorrente: ele saía de Auschwitz, chegava em casa e encontrava a família à mesa. De imediato começava a narrar o que viveu no campo de concentração e observava familiares bocejando com indiferença enquanto falava. Ninguém ligava, não se importavam.

O psicanalista Christian Dunker, contando a história acima, chama a atenção para a fundamentalidade de que nosso sofrimento seja reconhecido. Não termos nosso sofrimento reconhecido é perder o direito às nossas histórias. Perder nossa história é perder a nós mesmos.

No caso da comunidade judaico-israelense brutalmente devastada pelo Holocausto, e da qual Levi fazia parte, o pranto pelo reconhecimento da dor é coletivo. É apenas através desse reconhecimento que passa a ser possível seguir e dialogar. Por muitos anos esse reconhecimento foi negado. O mundo assistiu, com perversa indiferença, ao extermínio de judeus. Nada foi feito e, diante de covardia coletiva, testemunhou-se o horror do genocídio, dos confinamentos, dos sufocamentos e cercamentos.

Quando, no começo de outubro, o Hamas se entrega a massacres brutais de israelenses em território israelense, a ferida que nunca fechou, mas que parecia estar sangrando menos, é rasgada na carne com força outra vez. Agora de modo inédito porque, dessa vez, o povo judaico-israelense estava em casa.

Seria preciso voltarmos ainda mais.

Ao tempo em que judeus não eram bem vindos em lugar algum pela Europa. Antes da Guerra. Sem ter onde aportar, muitos recorriam a Jerusalém e arredores em busca de segurança e pertencimento. Uma identidade cuja história é marcada pela diáspora, pela rejeição e pelo abandono. Feridas que ficam e são passadas como herança.

Os ataques do Hamas clivam psiquicamente as novas gerações. Estava ali, bem diante deles, o horror da história que aprenderam a honrar. Que efeito imediato isso tem? Devastador, imagino. Rompe-se com um tipo de consciência para inaugurar outro.

Escuto judeus no Brasil suplicando pelo reconhecimento da dor causada pelo Hamas a seus irmãos em Israel. Como podemos nos opor essa atitude? Não me cabe criticar.

Sem que reconheçamos a dor ancestral que inunda a comunidade judaico-israelense fica difícil nos unirmos a ela para elaborar a dor dos outros: a dor de um povo que também sabe a respeito de diáspora, de rejeição, de humilhação, cercamentos, confinamentos e desumanização.

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Os palestinos estão sendo massacrados pela política neoliberal e colonial do atual governo de Israel. Há décadas o colonialismo empurra palestinos para os becos da região, mas foi com Netanyahu, o mais neoliberal dos líderes de Israel, que as práticas coloniais se intensificaram. A história do colonialismo não se separa da história do Capitalismo, muito pelo contrário. E é preciso falar sobre isso.

Mas, a fim de reforçar o argumento inicial, digo que lutar contra o massacre que está sendo promovido por Netanyahu sobre o povo palestino com a mentirosa justificativa de que assim o Hamas, grupo que ele ajudou a armar, vai ser eliminado passa pelo reconhecimento do sofrimento e do luto que judeus do mundo todo estão hoje vivendo diante dos atos terroristas em Israel.

Não se trata de estabelecer uma olimpíada da dor e do horror. Para fins dessa pequena reflexão, importa o pedido de reconhecimento do sofrimento porque sem esse reconhecimento não há como seguir. Para nenhum de nós. Individual ou coletivamente.

Muitos dos que agora choram pelos seus em solo israelense são contra Netanyahu e suas práticas coloniais. Nem mesmo o atentado terrorista do Hamas e a perda dos seus os fez mudar de ideia. E eles sabem que não é destruindo Gaza que o Hamas será destruído. Sabem que talvez o oposto ocorra. Sabem que territórios foram ilegalmente ocupados. Querem opções para a paz, para que possam estabelecer convivência pacífica com seus vizinhos. Sabem também que as políticas de Netanyahu poderão resultar no aumento do antissemitismo, o que seria terrível.

Estamos testemunhando um fim de mundo. Uma tentativa de extermínio étnico televisionada acriticamente e com apoio de potências ocidentais.

Para que lutemos contra esse estado de coisas o que deve ser enfrentado não é, claro, Israel, o judaísmo e, eu argumentaria, nem sequer o sionismo, mas sim as práticas liberais e coloniais de ação de governos, incluído aí o de Israel. O que está exterminando palestinos não são necessariamente políticas sionistas, mas liberais. Não é mais por superioridade demográfica ou território, é por mercado.

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É esse o tecido da simpatia e da amizade entre um bolsonarismo de características claramente nazi-fascistas que faz uso de símbolos e signos de supremacistas brancos, e posa sorridente ao lado de um homem fantasiado de Hitler, com o governo de Netanyahu.

Vende-se a ideia de que a guerra é por justiça, direito de defesa, ameaça de extermínio. Apela-se para dores reais, brutais e legítimas com o objetivo de ir à guerra acumular riqueza para os empreendedores do apocalipse vestidos de políticos e seus parceiros internacionais.

A regular batalha travada contra a Palestina rende muito dinheiro. Armas são compradas para serem testadas em corpos palestinos. Regiões são destruídas e, depois, vende-se concreto e tudo mais para que sejam reconstruídas. O ocidente lucra e apoia vibrantemente que as coisas sigam como estão. Ti-tchim.

O aspecto econômico do extermínio raramente é trazido à luz. O mesmo capital privado que estava apoiando o Holocausto pulsa hoje alimentando a matança de palestinos. Sem esse apoio, não haveria nem Hitler, nem Bolsonaro, nem Trump, nem Mussolini, nem Natanyahu. Uma mega corporação do ramo de alimentos está enviando seus produtos para o exército israelense. A perversão dessa ação é incontornável. Vai mandar comida para famintos de morte, não para os famintos de vida que estão morrendo como baratas cercados por um muro.

Um estado? Dois estados? Enquanto ingenuamente debatemos uma solução fictícia, a solução já foi encontrada: a perpetuação do que já temos. Um estado de apartheid. Um povo fulanizado. Cercamentos. Confinamentos. Marginalidade. Periferias.

De tempos em tempos, joguem munição sobre essa gente em Gaza ou arranquem suas casas na Cisjordânia. Precisamos renovar o estoque de armamentos, renovar o medo. Nosso fornecedor ofereceu armas novas, são lindas e eficientes.

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Há anos a imprensa hegemônica do mundo todo colabora adotando o que diz o governo de Israel como se assessoria de imprensa fosse e coisificando palestinos. "A guerra Israel x Hamas", dizem. Não existe essa guerra. Existe a guerra Israel x Palestina. Nomear assim é, de saída, vender uma mentira.

Se chamamos de terrorismo os ataques do Hamas (e eu concordo com a definição porque entendo que terrorismo é o assassinato premeditado de inocentes promovido por grupos políticos), temos que usar a mesma terminologia para apontar o que faz o exército israelense em Gaza. Ah, mas eles estão apenas se defendendo, dirão alguns. Essa linha argumentativa é um poço sem fundo. Os palestinos podem alegar a mesma coisa. Vamos voltar esse filme até quando? Não faz sentido se o que queremos é que inocentes parem de morrer e todos possam conviver na região.

Está dado que morrer em Israel é mais triste do que morrer na Palestina. Foi o que disse de forma despudorada um apresentador da Globo News dias atrás. Vidas palestinas valem menos. É aceitável que escutemos isso sem nos revoltar? E aqui vamos falar dessa coisificação de um povo, de uma etnia, de uma raça.

Como se coisifica um povo? Eles não têm nome, não têm rosto, não têm história. São uma massa violenta. Do outro lado do muro todos têm nome, vamos contar a história dos mortos. Como se chamavam, o que gostavam de fazer, no que eram formados, que tipo de filhos/pais/irmãos eram? Do lado de cá, ninguém tem história. Se não tem história, não tem vida. Se vivo não está, pode matar. De um lado do muro, um imaginário europeu e branco. Do outro, pobres miseráveis de pele escura que não merecem viver.

O brutal na história é que deveria ser justamente a Europa a vilã desse jogo. Foi ela que coisificou judeus, é ela que atua na coisificação de muçulmanos, foi ela que decidiu redesenhar soberanamente a região que hoje está em guerra sem um planejamento humanitário decente e justo, que avaliasse a história de conflitos prévios, dores ancestrais e desejos de décadas de ambos os lados.

É desse modo que naturaliza-se a barbárie. Não são pessoas. São coisas. Mate-se, não tem ninguém ligando. Serviu para justificar o Holocausto. Serve para justificar o que estamos vendo hoje.

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Lógica idêntica é usada entre os centros e as periferias no Brasil, mas isso fica para outro desabafo.

Lutar pelo cessar fogo é a única coisa decente que podemos fazer nesse momento. Na sequência seria importante expor Netanyahu e seu governo pelo que são: liberais sanguinários que reforçam práticas coloniais usadas há décadas na região para lucrar e enriquecer e que se entregaram a crimes de guerra contra palestinos. Só assim, enquanto humanidade, poderemos começar a desatar o nó e exigir que nunca mais, em lugar algum, sob nenhuma circunstância, povos sejam diminuídos, cercados, desumanizados, exterminados.

Primo Levi, sobrevivente do Holocausto, se suicidou em 1987. "É Isto um Homem?" é seu livro de memórias. Abaixo, um trecho. Diz muito sobre passado e presente.

"Vocês que vivem seguros

em suas cálidas casas

vocês que, voltando à noite,

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encontram comida quente e rostos amigos,

pensem bem se isto é um homem

que trabalha no meio do barro,

que não conhece paz,

que luta por um pedaço de pão,

que morre por um sim ou por um não.

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Pensem bem se isto é uma mulher,

sem cabelos e sem nome,

sem mais força para lembrar,

vazios os olhos, frio o ventre,

como um sapo no inverno.

Pensem que isto aconteceu:

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eu lhes mando estas palavras.

Gravem-nas em seus corações,

estando em casa, andando na rua,

ao deitar, ao levantar;

repitam-nas a seus filhos.

Ou, se não, desmorone-se a sua casa,

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a doença os torne inválidos,

os seus filhos virem o rosto para não vê-los".

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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