Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

O Palmeiras e o futebol pelos olhos de Luiz Gonzaga Belluzzo

O Palmeiras estaria encerrando um ciclo vitorioso ou passando por um intermezzo? Fiz essa pergunta ao economista Luiz Gonzaga Belluzzo, palmeirense apaixonado, e a resposta foi um convite para que atravessássemos juntos e de mãos dadas os portais que nos levam da vida ao jogo e do jogo à vida numa jornada desenhada para oferecer a certeza de que não há diferença entre um e outro.

Na saúde e na doença. Na alta e na baixa. Na glória e na tragédia. A sabedoria dos que compreendem que ganhar é divino, mas perder é inevitável e, em ambos os casos, o mais importante é ver entrar em campo a camisa verde com o escudo da Sociedade Esportiva Palmeiras colado ao peito. Sentir mais do que pensar ou desejar. Ficar no presente sem ousar ofender o futuro com previsões.

Enxergar o futebol - e o Palmeiras - através dos olhos de Belluzzo é delicioso. Formado em direito pela USP, em 2001, foi incluído no Biographical Dictionary of Dissenting Economists entre os cem maiores economistas heterodoxos do século 20. É considerado o melhor economista heterodoxo do Brasil por suas interpretações, sugestões e críticas à sociedade brasileira, sob a ótica de Karl Marx e John Maynard Keynes. Fez parte do conselho deliberativo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, além de consultor pessoal de economia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E, claro, foi presidente do Palmeiras entre 2009 e 2010.

Dedicado, passou para os filhos Luisa e Carlos Henrique o amor pelo Palmeiras, o que é sempre uma grande conquista para um pai ou uma mãe. Aos 80 anos segue afiadíssimo em suas análises e associações. Aqui, um pouco do pensamento de Belluzzo a respeito do jogo, do Palmeiras e da vida - ainda que tudo seja rigorosamente a mesma coisa.

As SAFs são entendidas de forma geral como o caminho moralmente correto a se tomar no futebol brasileiro. Décadas de administrações ruins e negligentes nos trouxeram até essa avaliação. Mas ela me parece ser simplista. As SAF são, para mim, uma solução catastrófica para um problema real na medida que concentram ainda mais o poder. O senhor concordaria?

O futebol é o esporte das multidões. Hoje em dia tudo ou quase tudo que se relaciona com ele recebe o toque do dinheiro. Antigamente, nos tempos do velho profissionalismo, o dinheiro corria dos bolsos dos cartolas para os cofres dos clubes. Nos anos dourados do futebol brasileiro, entre o final dos 50 e o final dos 70, a coisa era assim. Ainda me lembro do ex-presidente do Palestra Mário Frugiuelli, exibindo o seu cheque pessoal, usado na compra do passe de Chinesinho. Vicente Matheus, então presidente do Corinthians, contratou Almir com o dinheiro da sua conta bancária. Depois da recente invasão dos critérios mercantis na gestão esportiva, o dinheiro corre de lá para cá, de cá para lá. Chamam isso de modernidade, progresso, novo profissionalismo. Não é de espantar que tenha chegado a hora do futebol. Esporte preferido pelas multidões globalizadas, o futebol transformou-se num grande negócio. A paixão dos apaixonados foi apropriada e domesticada por um formidável aparato midiático-mercadológico. Afirmo que não se trata de um embuste, de uma falsificação das finalidades "verdadeiras" do futebol, senão de uma forma de ser, de um modo de existência do entretenimento contemporâneo. Trata-se da apropriação pelo mercado do tempo livre dos cidadãos.

Muitas das críticas feitas a Leila Pereira partem do princípio de que ela não conhece a alma palmeirense, ou sequer a história do clube. Em que medida esse distanciamento atrapalha ou ajuda uma gestão?

O ambiente do futebol é peculiar. Os cânones e práticas que regem a vida dos clubes não são os mesmos que regulam o desempenho das empresas. Nos clubes de futebol as palavras da presidente ou do presidente não ganham o status de palavras de ordem. Devem ser, sobretudo, palavras de enternecimento e convencimento. As invectivas que se derramam às costa da presidente Leila são as mesmas que afligiram todos os presidentes que a antecederam. Os clubes de futebol têm uma origem, digamos, associativa. Em geral, trata-se de uma associação voluntária em torno de uma identidade. Esse é o caso de muitos brasileiros, como o Corinthians e o Palmeiras formados a partir das iniciativas de imigrantes das classes trabalhadoras. Isso tem vários significados, um deles é o da "identificação". É uma forma de se identificar com o Outro, um processo quase natural de buscar uma identidade afetiva.

O Palmeiras desde a chegada de Abel se transformou no melhor time do continente. Como o senhor avalia o momento atual? Seria o fim de um ciclo ou um intermezzo?

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Quem viveu as glórias do seu time do coração também experimentou as dores de uma era de derrotas persistentes. Assim foram os anos de fila do Corinthians entre 1954 e 1967. Não foram outras as agruras do Palmeiras entre 1976 e 1993. O São Paulo também viveu uma temporada de baixa entre 1957 e 1970. Diante dessas lições da história, é temerário descortinar o futuro. Mas, estou certo que o Palmeiras dispõe de condições futebolísticas e financeiras para recuperar o protagonismo vitorioso.

O que há de específico - e de especial - sobre o estado de espírito palmeirense, isso que o senhor em um texto magistral chamou de "ideia"?

Carlos Drummond de Andrade ensinou em seu livro de crônicas "Quando É Dia de Futebol":

"Do Jeca-Tatu de Monteiro Lobato ao esperto Garrincha e a esse fabuloso menino Pelé, o homem humilde do Brasil se libertou de muitas tristezas. Já tem caminhos abertos à sua frente e já sabe abri-los, por conta própria, quando não é assistido pelos serviços oficiais ou de classe a que cumpre melhorar as condições de vida coletiva. O futebol trouxe ao proletário urbano e rural a chave ao autoconhecimento, habilitando-o a uma ascensão a que o simples trabalho não dera ensejo". Escorado nessas esperanças, nosso poeta Carlos Drummond de Andrade assim escreveu em sua coluna no jornal Correio da Manhã. Escreveu para celebrar a conquista da Copa do Mundo de 1958, aquela que nos redimiu das tristezas do Maracanazo de 1950. Para o poeta, o futebol exprimia a autoconfiança do povo em si mesmo. Vou me valer de com Albert Camus. O autor do clássico "A Peste" tomava sua refeição em um restaurante do Quartier Latin, quando foi informado de sua escolha para o Prêmio Nobel de Literatura de 1957. M.M. Owen conta que uma semana mais tarde, Camus foi entrevistado pela televisão francesa. O escritor e seu entrevistador, contudo, não estavam sentados em algum estúdio confortável. Estavam no estádio Parc des Princes, em meio a uma multidão de 35 mil pessoas, assistindo a uma partida entre o Racing Club de Paris e o Monaco. O goleiro do Racing reage muito lentamente a um chute cruzado desviado, deixando a bola entrar no gol rente à trave mais próxima. A câmera corta para a arquibancada, onde Camus é questionado sobre o erro do goleiro. Ele pede leniência para o jogador. Leniência não é um benefício que os torcedores do Jogo Bonito concedem habitualmente aos atletas. Escritor uruguaio que cuidou das "Veias Abertas da América Latina", Eduardo Galeano era um apaixonado pela bola correndo nos gramados. Em seu livro "O Futebol Entre o Sol e a Sombra", Galeano narra o crepúsculo dos deuses dos estádios. "A bola o procura, o reconhece, precisa dele. No peito de seu pé, ela descansa e se embala. Ele lhe dá brilho e a faz falar, e neste diálogo entre os dois, milhões de mudos conversam. Os Zé Ninguém, os condenados a serem para sempre ninguém, podem sentir-se alguém por um momento, por obra e graça desses passes devolvidos num toque, essas fintas que desenham zês na grama, esses golaços de calcanhar ou de bicicleta: quando ele joga, o time tem doze jogadores.

- Doze? Tem quinze! Vinte!

A bola ri, radiante, no ar. Ele a amortece, a adormece, diz galanteios, dança com ela, e vendo essas coisas nunca vistas, seus adoradores sentem piedade por seus netos ainda não nascidos, que não estão vendo o que acontece. Mas o ídolo é ídolo apenas por um momento, humana eternidade, coisa de nada; e quando chega a hora do azar para o pé de ouro, a estrela conclui sua viagem do resplendor à escuridão. Esse corpo está com mais remendos que roupa de palhaço, o acrobata virou paralítico, o artista é uma besta:

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- Com a ferradura, não!

A fonte da felicidade pública se transforma no para-raios do rancor público:

- Múmia!

Às vezes, o ídolo não cai inteiro. E às vezes, quando se quebra, a multidão o devora aos pedaços."

Talvez inspirado em Heidegger, o grande César Sampaio reconheceu, certa vez, que o Dasein do futebol morre duas vezes. A primeira, no ocaso da carreira.

Como lidar com as Organizadas, espaço de tantas coisas lindas e importantes, mas também de violências?

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O futebol, ao mesmo tempo em que leva as pessoas ao êxtase, leva também ao cúmulo da agressividade. Pegue um jornal esportivo qualquer. O que ele faz? Leva ao paroxismo a rivalidade e a oposição dos clubes, porque para ele não é só uma competição esportiva, é um âmbito de realização e frustração das aspirações. A minha eleição me marcou muito. A torcida estava do lado de fora. Gritaram e pediram que fosse até lá. Fiquei muito tocado porque eram meninos jovens, entre 14 e vinte e poucos anos. Eles começaram a me agarrar de uma maneira que alguém só agarraria o pai ou a mãe. Isso revela que a torcida organizada preenche uma função que a família não preenche mais, que as outras relações de convivência também não conseguem preencher. Na verdade, isso faz emergir uma dimensão perversa da sociedade. Eles poderiam curtir os clubes, apaixonar-se de uma maneira mais serena, mas é aquela coisa ansiosa, parece que o clube é a única coisa que merece seu afeto no mundo.

Sobre seleção brasileira, minha análise é a de que ela se distanciou do que somos culturalmente. Nosso futebol está longe de contar, no campo, o que somos de melhor. O futebol de hoje fala de um Brasil institucional, conservador, branco, embevecido por arrogância e poder. O senhor concordaria?

Desconfio de que o declínio do jogo da bola no Brasil guarde parentesco com a "racionalização" da formação dos jogadores. Expulsos da espontaneidade das várzeas e das praias pela urbanização eversiva, os futuros jogadores foram metamorfoseados em autômatos com a ajuda dos burocratas das escolinhas de base. Lembro-me de alguns que passaram dos campos pelados da várzea para os gramados do futebol oficial, com direito a nome no jornal e esperança de chegar à seleção brasileira. Julio Botelho, o Julinho, Djalma Santos, Carbone, Idário, Waldemar Carabina, Rubens, Homero. Nos anos 50 e 60, São Paulo de Piratininga se transmutava de capital da província para a metrópole. Meu olhar de menino e adolescente, fanático pelo dito esporte bretão, via São Paulo como um imenso campo de futebol, interrompido por impertinentes avenidas e arranha-céus. Jogava-se futebol nas ruas, nos becos, nos quintais, em todos os cantos. Nos fins de semana, sentado nos barrancos, eu assistia à bola dos adultos correr solta. Nos dias úteis, a molecada cabulava aula e se juntava nos terrões que simulavam campos de futebol. Os gazeteiros ora celebravam os gols marcados, ora se estapeavam por causa de faltas controvertidas. Socos e pontapés eram desferidos com lealdade e até mesmo com amizade. Tudo acabava bem, descontadas as fraturas de nariz.

Que soluções poderiam existir para o nosso futebol além das SAF?

Minha cara Milly. Busquei em meus alfarrábios considerações que prestei, anos atrás a seu colega de colunismo Juca Kfouri. Os clubes brasileiros são instituições híbridas, ao mesmo tempo amadoras e profissionais. Essa é a sua "natureza" atual, decorrente de sua formação histórica. Qualquer tentativa de executar projetos tecnocráticos de engenharia social, que não tome em consideração essa "natureza" contraditória, está fadada ao fracasso. Também fracassarão os cometimentos que pretendam eliminar sumariamente os adversários e oponentes. Esse tipo de "solução final", promovida por alucinados em momentos históricos recentes, não só é eticamente condenável, mas também política e administrativamente contraproducente, como o comprovam as experiências recentes de mandonismo nos clubes. O Palmeiras iniciou um caminhada em direção a procedimentos mais democráticos, ainda que essa ousadia possa custar, como vem custando, arreganhos de incompreensão voluntária e episódios de manipulação de informações. Vamos combinar: a paixão pelo clube promove atos de generosidade e doação pessoal e, ao mesmo tempo, de deprimente mesquinharia. É humano, demasiado humano. Nesse ambiente é de prudência respeitar a sabedoria do reformismo chinês: atravessar o rio saltando sobre as pedras. Se você ainda não sabe, sou um reformista radical, posição que assumi depois de examinar com cuidado as experiências totalitárias do século 20. É preciso ter mais coragem e persistência para reformar do que para inflar a alma com proclamações de rupturas improváveis.

O que o Palmeiras representa para o senhor?

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Já no alvorecer da quarta-feira, 25 de outubro, meu Palmeiras enfrenta o São Paulo. Meu filho Carlos Henrique enviou um email, quase uma prece: Pai precisamos ganhar. Hoje pode ser o começo de nossa redenção. Sei que ele, como eu, não abrigamos na alma a angústia da derrota anunciada, mas, sim, o impulso incontido para a vitória, sempre arrancada das reservas de nossas esperanças. Pouco ou quase nada se equipara em minha vida à emoção de contemplar as onze camisas verdes ostentando o escudo glorioso da Sociedade Esportiva Palmeiras.

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