Milly Lacombe

Milly Lacombe

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
OpiniãoEsporte

O marido de Ana Hickmann e a ideia estabelecida do que é família

O empresário Alexandre Correa, 51, é o homem acusado de praticar violência doméstica contra a apresentadora Ana Hickmann, com quem é casado. Desde a notícia da ida dela à delegacia prestar queixa contra ele as redes sociais são inundadas de vídeos em que podemos ver Correa ser grosseiro com Hickmann. Para muitos, não é nada. É do jogo. Casamento é isso mesmo, meu povo. Nada para ver aqui.

De fato: é do jogo. Do jogo em que a concepção de família é uma ideia hierárquica de poderes muito bem concentrados: papai manda, mamãe obedece, filhos são criados para serem homens machos heterossexuais, filhas, as tais fraquejadas, são criadas para serem belas, recatadas, do lar e arrumar um marido que vai, sobre elas, reproduzir todas essas violências.

Nesse jogo, a agressão física começa sempre - cientifica e inevitavelmente falando - com a agressão verbal. Se um homem agride você com o verbo, o passo seguinte é o tapa e daí em diante. Isso não é uma especulação; são estudos.

Essa é a ideia de família que é base importante de ideologias por trás de horrores como o bolsonarismo, por exemplo. Os papeis de gênero estão definidos a priori. Quem tentar escapar dessa rigidez pode receber corretivos. As mulheres usualmente recebem. Algumas - poucas - acabam indo à delegacia.

Mas, claro, essa organização familiar não é apenas uma pauta das direitas; ela vive de forma confortável nas esquerdas também. A diferença é que as direitas centralizam a pauta e as esquerdas fingem que não ligam mas reproduzem em seus lares muitos desses conceitos.

Vale dar uma espiada nos novos dados da violência contra a mulher divulgados nessa segunda-feira pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São os números de uma guerra cujo inimigo é o feminino e o corpo da mulher.

Nessa rigidez não pode decote, não pode falar com um homem no restaurante, não pode não fazer o jantar, não pode se divertir, não pode rir muito alto, não pode ser sujeito. Pode cuidar da casa, dos filhos, ficar quieta e ser objeto.

Essa ideia de família é fundamental para a extrema direita aqui e no mundo. É por isso que os movimentos feministas, trans-feministas e LGBTQIA+ incomodam tanto. É por isso que deve-se ridicularizar a tentativa de mudarmos a linguagem e adaptarmos os pronomes, é por isso que tentam reduzir o feminismo a uma luta para ter pelos debaixo do braço.

Destruir essa ideia de família é essencial para desestruturar os conceitos da extrema direita sobre dominação, concentração de poder, de riqueza e exploração. Esse é o núcleo da questão e, não por acaso, ele envolve o direito à saúde reprodutiva da mulher.

Continua após a publicidade

Trata-se de uma ideia tão difundida e estruturada essa de família que ela pode perfeitamente infectar relações entre pessoas do mesmo sexo, que reproduzem poderes e opressões em seus núcleos familiares.

Assim, não é estranho que Alexandre Correa tenha fotos ao lado de Bolsonaro. É apenas coerente que alguém acusado de coisas indizíveis nutra os mesmos valores de Jair e sua turma.

Não é estranho que os bolsonaristas calem-se sobre violência de gênero: eles acreditam que é direito universal masculino aplicar corretivo em mulheres.

E não é estranho que Hickmann se veja, agora, abrigada pela luta feminista: nem toda mulher se declara feminista, mas todas, absolutamente todas, são vítimas do machismo e da misoginia.

Depois de revelada a queixa de Hickmann à polícia o marido da apresentadora foi às redes sociais reclamar que não pode mais ir à padaria porque é confrontado e xingado. Deu a entender que estava muito triste por ter perdido sua liberdade de ir e vir em paz. É assim a vida nessa sociedade patriarcal: eles têm medo de não poder mais ir à padaria comprar pão francês; nós temos medo que eles nos matem.

Que Hickmann tenha amparo e carinho para seguir sua batalha. Ninguém disse que é fácil, mas, às que dão o passo à frente, se torna caminho sem volta. E, sempre bom repetir: a ideia da família perfeita não existe nem nunca existiu. A família, nos moldes como ela é hoje celebrada, é um núcleo produtor de neuroses e de violências que atinge pobres, ricos, negros, brancos e que, no saldo geral, vitima mulheres e crianças.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes