Abel Ferreira em fase Paulo Leminski: repara bem no que não digo
O poeta paranaense Paulo Leminski segue sendo das vozes mais lúcidas para resumir a vida em versos. "Repara bem no que não digo" é uma de suas frases mais pertinentes. Tem coisas que dizemos em silêncio. Dizemos nas pausas. Dizemos com o corpo, com as mãos, com os olhos, com suspiros.
Abel Ferreira estaria se despedindo do Palmeiras? Eu acho que sim. Acho que o treinador entendeu que encerrar esses três anos absurdamente vitoriosos com mais um título, com mais uma arrancada e com mais uma glória seria de bom tom.
Quem sai por cima no futebol? Poucos. Pouquíssimos. Abel sairá. Sairia - deixemos assim para não atrair a fúria de quem o ama e quer que ele fique.
Se sair, prevejo que Abel saia chutando para os lados. A imprensa. As críticas. As avaliações injustas. O Brasil. A torcida exigente. O calendário. Os gramados. Em parte, terá razão. Em outra, não terá.
Coloquemos as coisas no lugar: Abel é craque e mudou o futebol brasileiro para sempre. Chegou com novos métodos de treinamento, de seriedade, de estudos, de colocar a ciência pra jogo. Construiu em meses um time campeão e uma força bruta raras vezes vistas no futebol. Chamo o seu Palmeiras de a terceira academia. Uma Força Bruta, assim com maiúsculas mesmo, inédita. Foi imenso esse Abel e uma estátua deve ser erguida em seu nome.
Mas Abel cansou. Cansou de ser criticado, de explicar o que julga que não temos capacidade de entender, de coletivas. E justo agora o Qatar parece chegar com um volume de dinheiro que fica até difícil entender cognitivamente de quanto se trata.
Talvez Abel saia sem ter compreendido o que é o Brasil. Nossa história, nossas cicatrizes, a origem de tanta violência, os motivos para que haja essa quantidade de jogadores que chega ao clube sem ter amadurecido, as histórias dos que são arrimo de família, a pobreza, a delinquência. Da onde vem tudo isso? Por que esse país é assim?
Mais de uma vez ele disse com orgulho que era europeu. No Brasil verdadeiro, o Brasil que acorda cedo e dorme tarde, que passa horas em transporte público, que a despeito da dureza da vida segue fazendo festa porque alegria é uma forma de resistência, ser europeu não diz nada e não é motivo de orgulho. Esse discurso tem eco nas elites brasileiras, que se julgam europeias e superiores. Nessa, Abel não fez golo nenhum.
Mas ele deixa uma herança poderosa. Um livro que precisa ser lido por muitos. Um tipo de paixão que deveria ser mais corriqueira. Trabalho, disciplina, entrega, ciência, seriedade: elementos que o futebol brasileiro tende a negligenciar.
Parece que agora Abel vai levar sua mentalidade europeia e sua equipa de trabalho para o Oriente Médio. Não ouviremos falar muito dele se esse for seu trajeto. Ninguém liga para o Qatar, muito menos para o inexistente futebol do Qatar. Mas dinheiro tem de sobra e não posso julgar quem topa passar um ano por lá e garantir o resto da vida de três ou quatro gerações de Ferreiras.
No final, já de saída e rumo ao Qatar, Abel poderia, da janelinha do jatinho que o levará a Doha e olhando para a cidade que o acolheu como um dos maiores treinadores que já vimos por essas bandas, citar outro verso de Paulo Leminski, um de nossos poetas mais geniais: "Haja hoje para tanto ontem".
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