Mulher não está em paz nem depois de morta
Houve um dia em minha vida que determinada informação passou por mim e ela me causou tanto desespero, desconforto e asco que eu achei que mantê-la alcançável me adoeceria. Então eu joguei a informação em um ambiente interno desses em que jogamos as coisas com as quais não queremos ou não conseguimos lidar. A informação era a seguinte, dada por alguém que sabia do que estava falado: se sua filha ou uma amiga morrer jovem não deixe o corpo dela sozinho nem por um minuto. Só o abandone depois do enterro. Mulheres seguem sendo abusadas mesmo depois de mortas, me disseram nesse dia.
Eu optei por esquecer forçadamente.
Agora, diante da revelação de que é isso mesmo o que acontece e de que se trata de um crime ensinado em cursinhos por supostos professores que são supostamente humanos, não há como seguir fingindo que eu nunca escutei o que me disse aquela pessoa num passado nem tão distante.
O abuso do corpo feminino é diário, como fica fácil constatar por pesquisas e pelo noticiário. Eu inclusive sugeriria ao noticiário que fosse criada a retranca "violência de gênero" ou "feminicídio" para que melhor contextualizássemos o que acontece com mulheres de todas as classes, de todas as raças, de todas as religiões, de todas as etnias todo santo dia.
Corremos para apontar o horror que é ser mulher em partes do mundo árabe como se ser mulher por aqui fosse uma experiência radicalmente diferente. Deixa eu contar uma coisa para vocês: não, não é.
Não temos a liberdade de sair pelas ruas sozinhas, não podemos ir ao estádio sozinhas, a shows, ao mercado, entrar no elevador quando só há homens, ao banheiro do shopping center, ao cinema. Não estamos seguras dentro de nossas casas e tampouco ao lado da pessoa que diz nos amar e que a sociedade insiste que é quem vai nos proteger.
Uma sociedade construída sobre a premissa de que precisamos de proteção é uma sociedade fracassada de saída.
As palavras do tal Evandro Guedes, parceiro de Eduardo Bolsonaro, sobre como abusar do corpo de uma mulher morta são realmente abjetas. Mas o que sai da boca dele é um sintoma e um diagnóstico. O debate não é a necrofilia, mas o que o corpo feminino representa nessa sociedade e de que formas ele segue sendo abusado.
O que diz Evandro Guedes é sintoma do patriarcado que coloca a ideia de hegemônica família como um núcleo hierárquico dentro do qual papai manda, mamãe obedece, filhos se curvam às normas da heterossexualidade que carrega com ela misoginia em estado puro. É o diagnóstico do fracasso que é o regime da diferença sexual.
Não se trata de um caso isolado. É prática social. É o dia a dia. É o tapa na cara diante do filho, é o "você acha mesmo que precisa comer essa sobremesa? Tá rechonchudinha demais. Depois meu pau não sobre e você reclama". É o "com essa saia mulher minha não sai". É a traição farta mesmo dentro do relacionamento monogâmico. É a prensada no transporte público. É o chefe que conta histórias de teor sexual e pede conselhos. É a masturbação no ônibus. É a foto da nossa bunda roubada no metrô. É tudo isso que nos leva ao corpo abusado no necrotério. De isolado esse caso Evandro não tem nada e quem insistir em enxergar assim a deplorável situação está fazendo mobilizado por privilégio de gênero.
O corpo feminino mesmo sem vida ainda é local de abuso, opressão, violência, dominação. Não é pelo prazer do gozo; é pelo prazer da superioridade, da autoridade, da soberania.
Estupro é arma de guerra usada por todos os exércitos do mundo. Não há no planeta homens de farda que invadam territórios e, no ato da invasão, dispensem essa poderosa ferramenta desmoralizante e dominadora. Não é sobre sexo, é sobre poder.
A masculinidade como ela se apresenta hoje é uma doença, uma infecção, uma pandemia. É preciso que nos livremos dela. Ser homem não tem nada a ver com essa ideia de masculino consumida por todos, todas e todes nós. Seria preciso falarmos abertamente sobre necessidade de deixar de ser esse homem. Enquanto não fizermos isso nossos corpos seguirão sendo abusados nas ruas, em nossas casas e nos necrotérios.
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