Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Lições de 2023

Anos passam mas não sem deixar lições. Todo último dia de um ciclo eu gosto de revisar o que aprendi. Então esse é meu exercício de 31 de dezembro.

Comecei o ano lembrando que simbologia tem poder. A subida da rampa do novo presidente, acompanhado de representantes de minorias políticas, foi gesto grandioso e cheio de significantes. Dois mil e vinte e três começou com uma catarse. Era a manhã que comunicava o fim de uma longa e escura noite sombria de nossas almas. Dois mil e vinte e três começou solar, começou com música, dança, afeto e carinho. Tínhamos tirado os fascistas do cargo máximo do Executivo.

Em seguida, o ano me ensinou que a não elaboração da ditadura militar vivida nas décadas de 60 e 70 deixou sequelas perigosas. A invasão de Brasília por pessoas vestidas com a camisa da seleção brasileira que depredaram patrimônio público na tentativa de ser a primeira fronteira de um golpe de estado foi o eco de uma ditadura jamais punida, jamais revelada em suas vísceras, jamais exorcizada.

Ainda nos primeiros meses, aprendi finalmente a fazer arroz soltinho e aprimorei a parada sobre a cabeça na ioga. Durante o Carnaval aprendi que um relacionamento pode acabar sem que haja traição, brigas, barracos, coisas duras ditas das quais nos arrependemos no minuto seguinte. Um relacionamento pode acabar de forma grandiosa e se transformar em outra coisa, tão poderosa quanto a de antes.

Aprendi que a Natureza acelerou seu processo de nos alertar para o caos que estamos causando. Mais chuvas, mais ventos, mais calor. Muito mais calor. Aprendi que a emergência climática finalmente ganhou o centro do noticiário, depois de décadas vivendo em notas de rodapé.

Dois mil e vinte e três me confirmou que a luta feminista invadiu os campos de futebol. Estupradores, abusadores e assediadores não estão mais com a vida tão fácil. Tem gente presa, tem gente que perdeu o emprego, tem gente que não pode mais sair às ruas sem ser identificado como um homem violento. Falta muito, o pacto da masculinidade segue firme, mas desse ponto não tem mais volta.

Foi em 2023 que eu também tive a certeza de que Seinfeld é a melhor série já produzida na TV e que nunca houve outra que chegasse perto. Ainda assim, se fosse gravada hoje, deveria ter algumas poucas partes cortadas.

Esse foi o ano em que definitivamente compreendi que o tecido que une esquerda e direita é feito de machismo e misoginia. É nesse ambiente que as duas ideologias se amam e se beijam. Nunca é hora para falarmos de aborto, não me venham com políticas identitárias para a vaga do STF, a pauta de salários iguais não é primordial, o trabalho doméstico e de cuidado vai ser tratado quando chegar o momento. Por agora, calem-se e sigam nossas orientações.

Em dois mil e vinte e três constatei que um acontecimento não pode mesmo ser medido por seu resultado imediato e que o tempo tem uma mania tinhosa de se comprimir e dar sentido a tudo. Para o Fluminense, 2008 terminou em 2023. Aprendi que é num campo de futebol que o mundo dos mortos e o mundo dos vivos convivem. Meu pai esteve comigo, ao meu lado, durante toda a campanha tricolor na conquista da América.

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Foi o ano em que, assustada, constatei que genocídios cometidos por países considerados aliados podem ser executados livremente e que pessoas que pareciam sensatas fazem contorcionismo moral para justificar o injustificável.

Foi em dois mil e vinte e três eu me apaixonei perdidamente por Diniz e pelo Dinizismo. De vez e de forma irremediável. Foi também o ano em que construí meu canto no mundo, uma conquista e tanto para uma canceriana com ascendente em touro.

Que dois mil e vinte e quatro traga alguma paz coletiva. Que alarguemos nossas consciências. Que machistas deixem de ser machistas, Que racistas deixem de ser racistas. Que homofóbicos deixem de ser homofóbicos. Que fascistas sejam presos, que os juros caiam junto ao atual presidente do Banco Central, que os ultra-direitistas que ainda mandam em Brasília sejam defenestrados de lá, que tenhamos mais feministas em situação de poder e que o capitalismo continue morrendo para que um novo dia possa nascer. Feliz ano novo, meus caros leitores e leitoras.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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