Milly Lacombe

Milly Lacombe

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
OpiniãoEsporte

A naturalização do sexismo na posse do novo presidente corintiano

Lá vamos nós outra vez apontar o que deveria ser óbvio mas ainda não é. A cerimônia de posse de Augusto Melo foi uma cerimônia feita por homens, com homens, para homens.

No palco, um bando de homens falando em nome do clube. Na audiência, dezenas de homens para todos os lados e talvez nem meia dúzia de mulheres. Conselheiros aos baldes, conselheiras nos dedos. Homens na reportagem do canal oficial. E homem apresentando a cerimônia, o que, pensando bem, talvez seja bom porque o hábito de colocar mulher no posto de MC diante de audiências exclusivamente masculinas, sempre sendo alguém que cumpre todos os exigentes padrões femininos de beleza vigentes, é questionável na medida em que só no papel de atração de dimensões eróticas a mulher é aceita nesse contexto.

Nos discursos de posse, os homens de terno falavam no masculino: O torcedor. O corintiano. O sócio.

"Ah, mas que chatice seguir apontando sexismo em tudo".

Veja, é uma questão de ponto de vista. Para muitas de nós, chato é ser corintiana e ser sempre ignorada como torcedora. Chato é quase não haver camisas oficiais ou uniformes para nossos corpos. Chato é ir ao estádio e ser assediada. Chato é ter que berrar que estupro é crime inegociável e que não faz parte do jogo. Chato é ser mulher e gostar de um esporte que nos despreza. Sabendo disso, você pode escolher parar, refletir e levar essas coisas em consideração ou apenas continuar a achar chatice que esse tipo de violência seja apontado.

As mulheres entraram em cena na cerimônia de posse do "time do povo" quando presidente e vices agradeceram suas esposas, filhas e irmãs. Como sempre, a mulher reconhecida e celebrada no âmbito do lar e em mais lugar algum.

A maior parte da torcida corintiana é composta de mulheres, mas essa parcela foi esquecida na cerimônia de posse do novo presidente e vices. Olhem para a arquibancada e vejam quem chora, quem berra, quem se descabela, quem sofre. Vejam a quantidade de mulheres e de meninas com a camisa do Corinthians. Vejam as mães com seus filhos e filhas.

Que ideia estapafúrdia é essa de seguir compreendendo a entidade "torcedor" como sujeitos homens apenas e falar apenas com eles em discursos oficiais?

Deveria ser o "time do povo" a tomar para si a mudança na linguagem e na estética do futebol. O time cuja torcida se organizou para protestar contra a contratação de um treinador condenado por envolvimento em estupro e foi capaz de provocar sua demissão. Essa é a força da torcida feminina do Corinthians que é regularmente ignorada pelas diretorias.

Continua após a publicidade

E outra vez, as torcedoras foram solenemente desprezadas nesse primeiro contato entre a nova diretoria e a massa. Uma pena. Augusto Melo poderia ter começado já fazendo diferente, mas fez igualzinho a seus antecessores.

A boa notícia: Augusto Melo, no ato da posse, anunciou que a prometida auditoria vai acontecer pelas mãos da Ernst Young Global Limited, a EY, e que qualquer malfeito da administração anterior será investigado e punido.

Essa é a notícia mais importante. Contas serão avaliadas, contratações e vendas também. Eis aí é o destaque positivo da cerimônia de posse, mais até do que o anúncio das contratações. O Corinthians precisa entender o que esses três anos significaram, descobrir erros, tropeços e eventuais malfeitos e jamais repetir o caminho tomado. Precisa arrumar a casa, começar a quitar suas dívidas, honrar compromissos firmados.

O volante Raniele, o lateral Diego Palacios e o meio campista argentino Rodrigo Garro foram as contratações reveladas para o masculino. Poderiam ter anunciado alguma novidade para o feminino? Certamente. Fizeram isso? Nem deve ter passado pela cabeça deles puxar o time feminino para o centro do palco no ato da posse. Justo o time que fez bonito em anos recentes.

O tema entrou em pauta apenas durante a coletiva, por causa de uma pergunta feita pela repórter da Globo que estava presente. Augusto disse que deve anunciar patrocinador para o feminino, que o time das mulheres é assunto na Europa dada sua competência e competitividade e que foi quem deu alegrias a ele nos últimos anos. Que bom que a pergunta foi feita.

Augusto Melo também falou em criar de imediato seis mil lugares extras e a preços populares no estádio, e essa é outra boa surpresa.

Continua após a publicidade

Entre boas e más notícias e constatações, a certeza de que muita coisa ainda precisa ser transformada nesse novo ciclo se o Corinthians quiser continuar a ser chamado de time do povo. Que Augusto Melo e seus homens tenham humildade e sabedoria para iniciar os processos. Boa sorte ao novo presidente.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.