Milly Lacombe

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Detalhes de uma trágica história que não é, nem jamais foi, sobre Cuca

Desde que a notícia da anulação da condenação de Cuca vazou, as redes sociais foram encharcadas com a alegria das pessoas que se consideram como torcedores do time do treinador, um pessoal que andava aquietado diante da gravidade das acusações. Mas bastou a manchete da anulação para que a turma colocasse a cara no Sol e trouxesse para a superfície desse lamaçal a falsa ideia de que estamos num jogo de "contra": tem os que são a favor e os que são contrários a Cuca.

Um mínimo conhecimento da luta feminista seria capaz de expulsar essa ideia reducionista de campo. Essa história não é, nem jamais foi, sobre Cuca.

Essa é a história de uma sociedade que naturaliza que uma criança que foi pedir uma camisa a jogadores profissionais seja arrastada para dentro do quarto com quatro homens adultos e veja a porta fechar atrás de si. Essa é a história de uma vida que foi, naquele instante, para sempre dilacerada. É a história de uma sociedade que recebe quatro suspeitos de um crime intolerável como heróis e vilaniza a criança que foi pedir uma camisa de presente e acabou estuprada. É a história de uma sociedade que jamais se importou em saber quem era essa criança, o que fazia, do que gostava, por que entrou em depressão depois do episódio, por que tentou se matar.

Essa não é nem mesmo a história que tem como protagonista o sêmen ou a investigação para saber de quem, afinal, era o sêmen sobre aquele corpo de criança. Essa é a história de uma sociedade que a cada minuto aceita sem revolta que um homem derrame seu indesejado sêmen sobre o corpo de uma mulher ou, ainda mais trágico: dentro de sua vagina.

É a história de uma sociedade que então vai obrigar essa mulher a ter o filho e a criá-lo sozinha. De uma sociedade que aceita que o proprietário do sêmen fuja para jamais ser visto mas que exige que essa mulher, mesmo a mais pobre delas, abdique de sua vida para sustentar a criança que foi colocada no mundo. É a história de uma sociedade que não exige nada da paternidade e tudo da maternidade.

Essa história não é sobre Cuca.

Do que adianta destruir a vida de um homem? O que vai mudar? Precisamos destruir a sociedade que se sustenta em machismo e misoginia.

Não se trata de estabelecer inimigos, apontar o dedo e exigir o cancelamento desse ou daquele. Tenho tentado argumentar essas coisas desde o início. Não é sobre Cuca; é sobre uma vida que foi interrompida dentro daquele quarto de hotel e sobre as outras milhões que todos os dias - todos os minutos de todos os dias - passam pelo mesmo.

Não é sobre o homem A, B ou C, é sobre a estrutura de uma sociedade que se organiza para proteger o acusado e culpar a vítima. Não é sobre como mulheres odeiam homens, é sobre como a misoginia forma homens para que eles odeiam o feminino e as mulheres.

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Cuca não é nem nunca foi um monstro. Eu o conheci. Eu conversei com ele. Eu dividi um taxi com ele e até saber do caso de Berna tinha Cuca como uma das pessoas mais gentis e respeitosas que conheci nesse meio. Esse deve ser o Cuca pai, marido, avô. Essa deve ser uma real dimensão da personalidade de Cuca.

Sob o ponto de vista de Cuca, ele fez o que qualquer um de nós faria: recorreu (tardiamente, verdade) ao sistema judiciário para se defender. Encontrou na lei um caminho técnico para anular a condenação. Todos nós faríamos isso.

Cuca tampouco precisaria ter se declarado culpado de qualquer coisa. Já disse isso algumas vezes. Não se pode exigir que alguém bata no peito e diga: fiz, fui eu, assumo, sou um monstro. Ninguém faz isso.

Não é sobre Cuca. É sobre uma sociedade que forma homens para que eles acreditem que o corpo de uma mulher existe para servi-los. É sobre uma mulher ser estuprada a cada oito minutos. É sobre 13 mulheres serem assassinadas por dias no Brasil por maridos, ex-maridos, namorados, ex-namorados, parceiros, amantes, ficantes. É sobre mais de 60% das vítimas de estupro no Brasil terem até 13 anos. É sobre uma sociedade que legitima a pedofilia na imagem da adolescente de saias que protagoniza o filme pornô.

Cuca não é, nem nunca foi, um monstro.

Monstruosa é a sociedade que naturaliza o assédio sexual ao corpo de crianças e adolescentes. Monstruosa é a sociedade que se organiza para cancelar, julgar e apedrejar as vítimas.

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O que precisamos é de aliados. De homens que entendam que o movimento feminista não é contra eles, mas a favor da emancipação de todos os seres desse planeta. Não é contra o ídolo deles, mas a favor de que suas mães, filhas, irmãs e mulheres possam existir com dignidade, sem medo de ir ao primeiro encontro com um desconhecido e acabar morta, sem medo de ir até a sala do chefe quando ele está sozinho e voltar violada, sem medo de beber demais na festa e acordar jogada na rua com a calcinha cheia de sangue.

E por isso insisto: seria muito bom se caras como Cuca se juntassem à luta.

Com a anulação da condenação, a situação legal de Cuca muda. Mas a da menina que foi arrastada para dentro daquele quarto não. O episódio não deixa de existir. O sofrimento de uma mulher não fica apagado. A anulação da condenação não é uma máquina do tempo que impede que a garota seja arrastada para o quarto de hotel com quatro homens e saia de lá com um corpo que não contém mais alma.

Focar na vítima, sempre.

Focar na dor, no sofrimento, na exclusão, na opressão. "Não há condenação porque o caso está extinto", dizem as manchetes. Extinto para quem? A menina segue morta. "Não houve novo julgamento porque o crime prescreveu", seguem os destaques. Prescreveu para quem? A família segue dilacerada, a menina entrou em depressão e tentou se matar pouco tempo depois do episódio. Hoje ela já não está mais aqui para lutar por seus direitos, por sua dignidade, por sua felicidade. Se o caso fosse reaberto, quem falaria por ela? Essa sociedade misógina e machista?

Focar na vítima. Sempre focar nas dores, nas cicatrizes, no sofrimento da vítima. Se essa fosse a instrução, a notícia da morte de Sandra teria chocado a todos. Mas não chocou. Não se fala sobre ela, sobre como teria sido sua vida depois do episódio de Berna, sobre quem ela foi, sobre quem amou, o que gostava de fazer, o que gostava de ler. Sandra não importa. Importa apenas reestabelecer a presunção de inocência do acusado e sair por aí silenciando as feministas que só existem para complicar a vida de privilégios que é direito sagrado de todos dos homens desse planeta.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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