Fala de Lula contra identitarismo revela seu lado mais fraco e envelhecido
Lula desceu a lenha na pauta identitária durante o ato de filiação de Marta Suplicy. Em alguns segundos, de forma apaixonada, disse que a pessoa deve se candidatar não por ser mulher ou negra ou isso ou aquilo. Deve se candidatar por querer ser liderança real aos movimentos sociais e não pela identidade.
Aparentemente o que ele diz parece certo, concordam?
É isso mesmo: venham para a política para mudar esse país. Venham aqueles que não têm medo de colocar a cara no Sol, aqueles que não se recusam a morar em assentamentos para entender a luta por dentro, aqueles que entram nesse jogo com o fígado e não com a cabeça apenas. A despeito de raça, gênero e sexualidade: venham os que têm a luta correndo no sangue.
Palmas. Viva. Lula, o maior de todos.
Nessa hora é preciso tentar sair do pensamento simples a caminho do complexo. E só podemos fazer isso por partes.
Lula é o maior presidente que esse país já teve? Sim, mil vezes sim. Lula nos livrou do fascismo bolsonarista? Sim, e por isso seremos eternamente gratos. Lula pode fazer muito mais? Muito, muito mais. E parece estar disposto a fazer. Seguiremos apoiando Lula? Sim! Seguiremos criticando o que deve ser criticado? Sem dúvida. Votaremos em Lula outra vez diante de ameaças como o bolsonarista Tarcísio? Votaremos e faremos campanha nas ruas.
Isso estabelecido, passemos às próximas etapas.
Lula é um homem de mais de 70 anos que enxerga a classe trabalhadora como sendo a mesma massa da década de 80. Lula não se importa com as especificidades do que é ser mulher, LGBTQ ou negro dentro dessa chave imensa chamada "classe trabalhadora". Lula acredita que, resolvidas as questões da classe trabalhadora, tudo estará resolvido - inclusive para mulheres, negros e gays.
É um pensamento antigo, envelhecido, simplório e preguiçoso. Mas Lula não enxerga isso porque está cercado de conselheiros que são sujeitos políticos iguais a ele - e Janja sozinha não faz verão.
Querem criticar a pauta identitária? Comecem pela maior delas: a do homem branco heterossexual. É essa a agenda identitária que conduz nossa política faz 500 anos. Em nome de alguma honestidade intelectual, comecem descendo a lenha nessa agenda aí.
O problema é que essa identidade se entende como universal e invisível. Quando Lula aponta dois homens para o STF ele está movido até o topo da cabeça pela pauta identitária.
Quando Lula berra que a pauta identitária não deveria ser matriz mobilizadora de lideranças políticas ele está movido até o topo da cabeça pela pauta identitária.
Acreditar que "classe trabalhadora" é uma massa homogênea cujos anseios se resumem a salário é pensamento raso, limitado, apequenado.
"Ah, mas as pessoas estão morrendo de fome, isso precisa ser resolvido". Sim, verdade. Primeiro o estômago, depois falaremos de moral, não foi isso o que Brecht disse? Mas as pessoas estão também morrendo por machismo, por racismo e por LGBTfobia. Mulheres morrem porque abortam em condições insalubres. Morrem de exaustão porque o estado as obriga a ter o filho e não oferecem apoio depois do nascimento. Morrem porque são abandonadas pelo pai da criança e desse nada se cobra.
A cara da classe trabalhadora brasileira é a mãe solo preta periférica que todos os dias pega duas horas de condução para ir ao centro da cidade cuidar de outras famílias e ser sub-remunerada por isso.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberE tá cheio de gente com essa cara por aí a fim de liderar a luta. O que faltam são oportunidades. O que falta é mudar todo o atual circuito de afetos dentro das instituições. Falta sim mulher negra no STF.
Lula se mostra incapaz de enxergar o caráter universalista das pautas chamadas identitárias e ao mesmo tempo acha que a chave "homem branco heterossexual" não atua enquanto força identitária sobre suas decisões e linguagem.
Nas palavras do professor Vladimir Safatle em seu recém lançado "O Alfabeto das Colisões" (Ubu):
"Há quem se refira a "identidade" para desqualificar lutas que questionam práticas seculares de exclusão naturalizadas sob a veste de discursos universalistas. Assim, na perspectiva desses críticos, as lutas ligadas aos movimentos feministas, negros, LGBTQIAP+ seriam em larga medida identitárias porque visariam, na verdade, criar uma nova geografia estanque de lugares de poder. Lugares esses indexados por identidades específicas [...]. Antes de acusar qualquer um de regressão identitária seria o caso de se perguntar sobre o identitarismo naturalizado pela hegemonia de uma história violenta de conquistas e sujeição operada, majoritariamente, por brancos europeus".
Então, Lula, antes de sair vomitando bobagens apaixonadamente por aí seria bastante decente montar ao seu redor um conselho de mulheres feministas, de LGBTQs e de pessoas negras. Assim você poderia dar uma equilibrada nas opiniões tão limitadas a respeito de assuntos que estão na ordem do dia e que chegam pelo seu atual grupo de conselheiros que, não por acaso, preenche uma mesma classe identitária: homens, brancos, heterossexuais com mais de 60 anos.
Termino com outro pensamento de Safatle que pode nos ajudar a complexificar a questão:
"As grandes transformações políticas não são uma questão de novas ideias; as grandes transformações políticas são uma questão de novos afetos. Não são novas ideias que produzem grandes transformações. São novos afetos que produzem grandes ideias".
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.