Milly Lacombe

Milly Lacombe

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
OpiniãoEsporte

Manifestem-se e mostrem que vocês se importam com as nossas vidas

Já podemos oficializar a opinião dos profissionais do futebol sobre a violência de gênero: são a favor.

A CBF não apenas é favorável, como tem histórico de prática. Além de ter um presidente afastado, está outra vez mergulhada em acusações de assédio sexual, agora na figura de seu diretor de comunicação que segue trabalhando como se um processo bem documentado contra ele não houvesse. Quem revelou mais esse escândalo foi o grande Lucio de Castro, da Agência Sportlight e do The Inqusitor.

O Santos também está se colocando ao lado da violência de gênero: Robinho, condenado por estupro, é pessoa bem-vinda no clube e agora participa de festividades.

Deveria ter seu nome tirado dali, deveria ser proibido de entrar, deveria ser colocado na lata do lixo da história do clube. Não se separa pedaladas de estupro. Não se separa vida profissional de vida pessoal quando o assunto é um crime tão hediondo, abjeto, delinquente. Mas não: O Santos tá de boaça com Robinho e o ídolo até frequenta churrascos no CT. Craque. Gênio. Fez muito pelo clube. Ídolo. O que ele fez sem a camisa do Santos não é problema do Santos, suas chatas.

Pois tinha que ser. Não deveria existir a chance de que crianças e jovens tenham como ídolo um estuprador.

Já o sempre elegante e ponderado Tite não liga e, quem não liga, consciente ou não, está apoiando.

Além do que, seu filho bombadão era, até ser flagrado, curtidor de postagens com alto teor de misoginia e transfobia. Tite nunca disse nada a respeito, muito menos o filhão que se limitou a, diante do barulho, apagar as curtidas. Tite anda colocando esse mesmo filhão ao seu lado em coletivas. O importante é alavancar a carreira da prole e não emitir críticas às violências cotidianamente praticadas contra mulheres. O que Tite tem a ver com isso, meu povo? As mulheres que lutem.

Tite acredita que no caso Daniel Alves nem todas as verdades foram reveladas, sugerindo que a vítima mente e que a justiça espanhola está equivocada a despeito das provas absolutamente inequívocas e de uma sentença clara e cheia de dados nauseantes. Quando finalmente alguém é condenado, Tite levanta suspeitas sobre o sistema penal o que, para nós, mulheres, é um gesto de extrema violência.

Tite não leu a sentença. Tite não está nem aí. Precisa cuidar do Mengão, parem de perguntar a ele sobre coisas pequenas como mulheres sendo estupradas por um de seus protegidos.

Continua após a publicidade

A boleiragem, que se manifesta prontamente sobre gramados ruins e pedras atiradas em ônibus, segue covardemente calada o que, já não temos mais dúvidas, denota apoio: violência de gênero tá valendo. Eu faço, ele faz, nós fazemos. E nada vai mudar.

Calar é apoiar. O silêncio é cúmplice.

Nada vai de fato mudar enquanto não houver uma rigorosa combinação de educação e punição.

Daniel Alves está preso. A notícia é boa. Boa porque pune o estuprador e boa porque tira a máscara da boleiragem brasileira - nos campos e nas cabines.

Mas a prisão não vai mudar nada se não existir um plano de reforma.

Não me importa se ele ficará preso dois, quatro, dez anos. Me importa saber se, quando ele sair, terá compreendido a violência do que fez.

Continua após a publicidade

Robinho e seus cúmplices têm certeza de que nada de grave cometeram. Sorriem, se abraçam, se lambem nessa confraternização tão hétero-normatiava: a cultura hétero-normatiava é homoafetiva.

Homens querem o afeto de outros homens, homens buscam o respeito de outros homens, homens querem passar tempo com outros homens, homens querem a opinião de outros homens, homens querem o reconhecimento de outros homens, homens citam outros homens. Das mulheres, querem sexo, cuidado e serviços domésticos.

Vejam como Pedrinho, acusado de violência de gênero, se derrete para Robinho, condenado por estupro, nas redes sociais. E vice versa.

Essa é a cultura hétero-normatiava. Alguns homens escapam dessa reprodução assim como algumas pessoas brancas tentam escapar da educação racista praticada no Brasil. A luta contra nossa configuração padrão é diária porque somos forjadas e forjados socialmente para agirmos de determinados modos.

Sem um pingo de noção dessa estrutura social, a maior parte da boleiragem, a quase totalidade dela, não acredita de fato que os crimes contra mulheres sejam assim tão graves. Somos propriedades. Somos objetos. E você só é realmente dono daquilo que pode destruir. Se você não pode destruir se chama usufruto. O título de propriedade é o que dá ao proprietário o direito de destruir. Sendo assim, por que tanta gritaria agora? O mundo é esse, Deus fez desse jeito. Calem-se. Me sirvam o jantar. Abram as pernas. Sigam caladas. Vou sair com meus amigos.

Meninos são criados para pegarem muitas mulheres. Vem desse cálculo seu capital simbólico. Pegue muitas da forma que for.

Continua após a publicidade

Mulheres são criadas para serem belas, recatadas e do lar. Mulher que sai com muitos é vagabunda.

Vadia é toda a mulher que age como um homem.

A sociedade diz aos homens: vão lá e façam o que tiver que ser feito para transar. E diz às mulheres: não se deixe estuprar.

Essa sociedade não forma meninos para não estuprarem. Forma meninos que entendem que mulher é bicho inferior, é para ser dominada e explorada. E forma meninas para acreditar que se alguma coisa de ruim acontecer a elas a culpa é exclusivamente delas.

Tá dançando sensualmente na boate a uma hora dessas e depois reclama que foi estuprada? Ah, para.

Sexo é uma coisa muito diferente para homens e mulheres em sociedades que nos moldam dessas formas. Para homens, é só mais uma noite de farra. Para mulheres, a violência de gênero é o fim de uma existência. Acabamos ali da forma como existíamos antes do crime. Morremos. E renascer custa muito. Algumas de nós não conseguem.

Continua após a publicidade

Sem educação seguiremos berrando por prisões e penas e dosimetrias. Mas não vamos mudar o mundo prendendo um estuprador por vez. É preciso mudar a estrutura, e a estrutura a gente só muda com educação.

Então, saibam que os que estão calados já foram posicionados nesse jogo abjeto: eles apoiam a violência.

Assim, se você não apoia o estupro, o feminicídio, o assédio e o abuso, posicione-se porque, se não o fizer, estará posicionado a favor da violência contra a mulher - e nós estamos sendo mortas e estupradas em números diários que se comparam ao de uma guerra. Posicione-se e nos ajude a transformar esse mundo tão violento para quem existe em um corpo de mulher. Manifestem-se e mostrem que vocês se importam com as nossas vidas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes